O mandado de segurança que impede a apreensão e o confisco de máquinas caça-níquel da casa de jogos Winfil, na zona sul de Porto Alegre, diverge de outras decisões recentes do Judiciário, inclusive de instâncias superiores.
Na sexta-feira (27), a juíza Viviane de Faria Miranda, da 3ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, acolheu recurso preventivo da FNR Entretenimento e Casa de Eventos — razão social da Winfil — e determinou que Polícia Civil, Brigada Militar (BM) e prefeitura de Porto Alegre, "em caso de eventual operação policial, abstenham-se de praticar qualquer ato de apreensão e/ou confisco de qualquer bem móvel que guarneça a sede da empresa impetrante, inclusive equipamentos eletrônicos".
Presidente do conselho de comunicação do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), o desembargador Túlio Martins avalia que a juíza, de primeira instância, adotou um posicionamento diferente daquele definido nos graus superiores.
— Acho que ela teve uma interpretação mais liberal quanto à posse das máquinas. Aparentemente, sim (houve uma divergência). Essas máquinas estariam com a documentação regular. Talvez por isso tenha ocorrido a interpretação — avalia Martins.
Os jogos de azar são proibidos no Brasil pelo artigo 50 da Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/41). O início da polêmica remonta à interpretação da Turma Recursal Criminal do Rio Grande do Sul, colegiado de segunda instância que reavalia decisões acerca de delitos de menor potencial ofensivo.
Nesta esfera, começaram a surgir decisões inocentando os donos de casas de exploração de jogo de azar. O argumento, em geral, é de que a Lei das Contravenções é ultrapassada, redigida na década de 1940 sob forte intervenção estatal e de costumes religiosos, sem base na atual conjuntura social e, portanto, com violações das liberdades individuais, o que é assegurado pela Constituição de 1988. Até este ponto, como argumentação para deixar de aplicar o direito penal na condenação de maquineiros, a Turma Recursal Criminal avançou. A novidade do despacho da juíza Viviane foi proibir de antemão as autoridades de atuarem no recolhimento de máquinas de caça-níquel.
Desde que abriu as portas, em 19 de outubro, a Winfil retirou os noteiros — onde os jogadores depositam cédulas de real — dos equipamentos. Sem dinheiro, não há aposta. Foi um recurso da casa, diante do receio de ação policial, para procurar desconfigurar a contravenção penal.
Agora, com o mandado de segurança, estariam aptos a operar com apostas. No despacho, não é citada explicitamente nenhuma autorização para que a casa opere jogos eletrônicos mediante apostas em dinheiro. A manifestação é no sentido de vetar apreensões ou confisco.
No despacho, a juíza cita que "a conduta em questão (jogos de azar) tem sido considerada atípica à luz da Constituição Federal de 1988 e do princípio da intervenção mínima. (...) Não é por razão diversa que as Turmas Recursais Criminais do Estado, reiteradamente, têm proferido decisões absolutórias quando da apreciação de ações penais envolvendo condutas da espécie".
A juíza transcreve, na sequência, trecho de acórdão com voto do juiz Luiz Antônio Alves Capra para basear sua decisão. A manifestação de Capra é no sentido de que o direito penal "é a forma mais drástica e incisiva de intervenção punitiva do Estado". Ele conclui alegando não ser recomendável criminalizar uma conduta "se outras formas de controle social se mostram suficientes".
"Situação que claramente se desenha em relação aos jogos de azar, que tanto podem ser legalizados, quanto combatidos por outros ramos do direito, em especial o administrativo, que bem se presta para combater o funcionamento de estabelecimentos comerciais ou o exercício de atividades que se ponham em desconformidade com a lei", diz a passagem, que se limita a afastar as punições penais e acolher as sanções administrativas. Não há menção, no trecho publicado pela juíza no despacho, sobre impedir órgãos de Estado de fazer apreensão de equipamentos ainda considerados ilegais.
A decisão a favor da Winfil cita que a aquisição das máquinas da casa é de procedência lícita, com notas fiscais anexadas à petição inicial. A juíza avalia que o eventual recolhimento dos bens "poderá inviabilizar as atividades da empresa e, uma vez encaminhados a depósito, poderão sofrer os efeitos da deterioração".
Citada por Viviane, a Turma Recursal Criminal já produziu votos e acórdãos que reforçam a legitimidade da ação repressiva e de recolhimento de máquinas. Em março de 2017, este colegiado manteve a absolvição de um homem acusado de explorar jogo de azar "diante da atipicidade da conduta".
Na página 13 do acórdão, que teve como relator o juiz Luis Gustavo Zanella Piccinin, é registrado que somente a infração penal está sendo desconsiderada, mas que continua sendo "legítima a ação do Estado na cessão da atividade, que perde somente o caráter penal, mas conserva, em toda a sua extensão e atributos, o caráter de poder legítimo de polícia, donde igualmente legais se afiguram as determinações de cessação de atividade, a interdição do estabelecimento e, no especial, a apreensão dos equipamentos que se traduzem em meio de exercício da exploração do jogo de azar".
O voto de Piccinin foi acompanhado integralmente pelo juiz Edson Jorge Cechet, presidente da Turma Recursal Criminal, e pelo próprio Capra, citado pela juíza Viviane para sustentar a concessão do mandado de segurança à Winfil.
O advogado da casa de jogos é Laerte Luis Gschwenter, o mesmo que atua em favor do bingo Coliseu e Roma. Em janeiro de 2017, Gschwenter e o proprietário do Coliseu e Roma, Sérgio Garcês, anunciaram que abririam as portas legalmente porque a Justiça — mais especificamente, a Turma Recursal Criminal — havia deixado de condenar os maquineiros por contravenção. Na versão deles, isso equivalia a uma liberação do jogo.
Na ocasião, em entrevista a GauchaZH, Cechet manifestou que a interpretação era equivocada.
— Não me parece que esteja de acordo. Para um estabelecimento comercial funcionar, tem de haver lei federal ou medida provisória autorizando. Não dá simplesmente para dizer que aquilo que não é proibido passa a ser permitido. Ao mesmo tempo, não quer dizer que a pessoa possa ser presa e condenada por essa conduta — disse Cechet.
Na véspera da abertura da Winfil, a 1ª Câmara Criminal do TJ-RS, da segunda instância do Judiciário gaúcho, manifestou-se em julgamento de recurso de forma unânime, indicando que o jogo de azar permanece configurando contravenção.
"O artigo 50 da Lei de Contravenções Penais não foi derrogado ou revogado pela legislação superveniente, encontrando-se em plena vigência. Se a questão é moralmente controversa, há base empírica a tornar, pelo menos, razoável a opção legislativa no sentido de criminalização. O jogo patológico é considerado um transtorno mental", prossegue a decisão, que discorre sobre os riscos de empobrecimento, rupturas familiares e comprometimento da vida social em casos de vício.
Casos semelhantes também já foram analisados no Supremo Tribunal Federal (STF). Atendendo a recursos do Ministério Público, a Suprema Corte reverteu pelo menos 16 decisões da Turma Recursal Criminal em favor dos maquineiros. Uma delas foi por autoria do ministro Edson Fachin, em setembro de 2016.
"Se em determinadas situações os jogos de azar desempenham função de lazer de inexpressiva ofensividade, em outras, podem exibir contornos mórbidos. (...) Importante salientar que o âmbito proibitivo da norma restringe-se ao agente que estabelece ou explora jogos de azar. O alvo da censura penal, portanto, é o agente que persegue lucro a partir da submissão de terceiros a jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte, com potencial de atingir a dignidade alheia", discorreu Fachin, mantendo o caráter penal da conduta dos maquineiros, além de não interferir na ação do Estado de reprimir as casas clandestinas.
Dois meses depois dessa decisão de Fachin, em novembro de 2016, o STF, ao analisar outro recurso do MP, declarou a "repercussão geral" da matéria. Isso significa que os 11 ministros da Corte deverão julgar conjuntamente se a exploração de jogo de azar segue ou não sendo um delito. O que ficar decidido por eles, valerá como norma a ser seguida em todo o país. Enquanto o martelo não for batido pela Corte máxima, os novos recursos que chegarem sobre a temática ficam em compasso de espera. Não há data para o julgamento. O relator é o ministro Luiz Fux.