Centenas de caixas de sapato expostas em prateleiras e um kichute — tênis com ares de chuteira que fazia o maior sucesso entre a gurizada na década de 1970/1980 — em cima do balcão compõem o cenário de uma loja que resiste às mudanças em Porto Alegre e na economia brasileira há 99 anos. Em meio à movimentada Avenida da Azenha, é no número 1.175 que hoje funciona a Botinha da Zona, um estabelecimento que se confunde com a história do comércio de calçados da cidade.
— É uma loja simples, que tem se mantido todos esses anos honrando seus compromissos — comenta o proprietário Waldemar Bruzatti, 85 anos, que defende que a maior e mais valiosa moeda do comércio é o próprio cliente.
Nascido em Cruz Alta, Waldemar veio tentar a vida na Capital logo que saiu do quartel. Não é o primeiro dono da Botinha da Zona, mas também não será o último. Ele pretende, futuramente, repassar o negócio a alguém que dê continuidade ao trabalho que escolheu aos 20 anos, quando comprou a loja.
A trajetória da Botinha da Zona começou com a família Lobraico, em 1919, confeccionando calçados para o Exército. Nos anos 1950, quando a loja — então sob o comando de familiares distantes do primeiro dono vindos de Passo Fundo — estava prestes a fechar, o senhorzinho boa praça fez uma proposta auspiciosa para assumir o negócio.
— Eu era representante de calçados. Trabalhava fazendo cobrança de duplicatas, vendendo sapatos colegiais e, no final de semana, fazia um bico na Botinha da Zona. Na época, recebia cinco mirréis e café da manhã, almoço e café da tarde. Quando fiquei sabendo que iam vender a loja, perguntei quanto eles estavam pedindo e fiz uma oferta — lembra Waldemar, que pagou 1,2 mil contos, com uma entrada de 200 contos e 10 parcelas de 100 contos (pagas, religiosamente, no dia 30 de cada mês).
O nome Botinha da Zona foi sugerido por moradores e frequentadores da região. A loja foi batizada assim em razão de um par de botinhas de gaita que ficava pendurado no local, o que acabou se tornando um ponto de referência.
— Antigamente, o espaço que hoje é ocupado pelo Estádio Olímpico era utilizado por ciganos que acampavam por ali. Quando eles saíam, o terreno ficava plano, aí a gurizada aproveitava para jogar futebol e procurar objetos deixados pelo acampamento. Um dos guris achou um pé de botinha de gaita, novo, e levou para a loja do Lobraico, que acabou comprando o calçado por dois contos. Ele pendurou o sapato na frente da loja, embaixo dos cinamomos, e o pessoal começou a usar a botinha como ponto de referência para orientar quem vinha de outros bairros — recorda Waldemar.
Relíquia da década de 1970/1980
Em cima do balcão de atendimento, que fica no fundo da loja, um pé de kichute chama a atenção de curiosos, saudosistas e até atrai propostas valiosas a Waldemar, que não tem a menor pretensão de vender o tênis que foi febre entre os jovens dos anos 80. O calçado preto, com travas embaixo que lembram uma chuteira, está na Botinha da Zona há mais de 25 anos, quando o proprietário recebeu a última leva da mercadoria. Dos 3,3 mil pares comprados, um veio com numeração diferente: um pé 41 e outro 42. Mas só um está exposto, o outro está bem guardado.
— Já veio gente aqui oferecendo mais de R$ 100 para comprar só o pé, mas não vendo de jeito nenhum. É uma recordação para que as pessoas que usaram matem a saudade. E para os pais mostrarem aos filhos o tênis que era o calçado do momento na época — diz Waldemar.
Clientela fiel contribuiu para loja se manter no mercado
A loja sobreviveu às mudanças econômicas e políticas do Brasil. Do balcão, Waldemar viu a evolução e o crescimento da Avenida da Azenha e da Capital. Ele lembra da época em que o bondinho passava em frente à Botinha da Zona, das trocas da moeda até chegar ao real. Enfrentou dois incêndios e um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e, mesmo assim, nunca deixou de crer no potencial do negócio.
— A maior satisfação é ver que o cliente fez uma boa escolha. Foram os clientes que deram continuidade ao nosso trabalho. É muito importante ter gosto pelo que se faz. E eu seguirei trabalhando porque acredito no que faço. Sinto-me a pessoa mais realizada dentro do que eu pude fazer — conta o proprietário, enquanto entrega três balas de banana para uma moça que tinha acabado de comprar um par de tênis.
Para Waldemar, nada supera o atendimento presencial ao cliente. Ele acredita que é preciso oferecer opções de qualidade ao consumidor e que, nem sempre, o que o comprador procura é a melhor solução:
— A gente precisa mostrar, também, sapatos que ofereçam conforto e qualidade ao cliente e que não gerem um transtorno a ele depois. Minha maior preocupação é que o cliente saia daqui satisfeito.
Além das balas de banana, quem passa na Botinha da Zona e compra algum item da loja, ganha um calendário que dá desconto de 10% na próxima compra.
— Sempre fizemos ações para ajudar a comunidade. No início, distribuíamos nos colégios cheques-desconto para que os pais pudessem comprar os sapatos colegiais aos filhos. Então sempre tem um agradinho e um desconto para o cliente que vem aqui.