Antonio Domingos Candido desliza o lápis pela régua de escalas com destreza. Vai juntando linhas e forma, em poucos minutos, o esboço de uma planta baixa. Quando derruba o esquadro no chão, abaixa-se e apanha sem hesitar.
A julgar pelo traço firme, disposição e também pela aparência — créditos para o cabelo tingido em casa pela esposa, Rosa —, é difícil adivinhar a idade dele. Mas essa não é uma informação que esconda.
— Cem anos e uns meses — diz, parecendo achar graça.
Repetindo a façanha alcançada há uma década pelo arquiteto Oscar Niemeyer, Candido completou seu centenário lúcido e ativo, aceitando novos projetos, inclusive.
Ele pode não ter criado obras afamadas como o sambódromo do Rio ou o Palácio do Planalto, mas deixou sua marca na capital gaúcha. Estima que já atuou em bem mais de mil projetos arquitetônicos. Especialmente na Zona Norte: em algumas regiões, encontra obras suas em cada canto onde passa.
— Esse aqui é meu. Esse aí também fui eu que fiz. Você vai virar para lá? Na esquina tem mais dois. E ali tem mais quatro — vai apontando pela janela do carro durante uma volta pelos bairros Cristo Redentor, Vila Ipiranga e Passo D'Areia.
Candido compartilha com o enteado Nereu José Constante Junior, 34 anos, um escritório na Avenida Baltazar de Oliveira Garcia, ao lado do Terminal Triângulo — trabalha em um dos prédios que ele mesmo desenhou na década de 1980. Como não tem diploma (aprendeu a profissão na seção de desenho da prefeitura de Porto Alegre no começo dos anos 1940), ele decide o que pode ser feito no terreno disponível e faz os traçados iniciais, enquanto Nereu, responsável técnico e formado em Arquitetura e Urbanismo, acompanha o processo, finaliza o projeto e cuida das exigências burocráticas.
Passar as ideias para o computador também fica por conta do enteado. É que Candido seguiu na arquitetura old school: prefere a velha mesa de desenho inclinada. Não se rendeu nem mesmo ao "advento da lapiseira". Ele ignora o kit de 0,3mm a 0,9mm que ganhou de Nereu. Usa lápis. Da calculadora, então, passa longe. Vai amontoando os cálculos em um dos cantos do papel.
— E os índices construtivos de cada região, o pai sabe de cor — emenda Nereu.
Candido tem quase 75 anos de experiência na área da arquitetura, mas enche a boca para falar que já trabalha há 93. Em 1924, começou na roça em Sombrio (SC), sua terra natal. Com 11, passou a trabalhar em olaria.
— Ajudei a construir a igreja católica puxando pedra em carro de boi — relata.
No começo, eu fazia mais casa e chalé de madeira. Agora é mais prédio. E eu gosto mais de desenhar edifícios mesmo.
ANTONIO CANDIDO
Projetista
Com 20 e poucos anos, veio para Porto Alegre em busca de emprego. Trabalhou como garçom em um café na esquina das ruas Pinto Bandeira e Alberto Bins, e não levaria muito tempo para um amigo intermediar seu ingresso na prefeitura, em 1943, onde atuou como desenhista de construções públicas, vistoriador, revisor e inspetor de edificações.
O prédio da antiga Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov), na Avenida Borges de Medeiros, foi um dos que ajudou a projetar. Também lembra, sem muitos detalhes, de ter acompanhado o projeto de abrigo antiaéreo que teve por pouco tempo no Viaduto da Borges — os vãos entre os arcos foram fechados com tijolos para proteger de possíveis ataques nazistas na II Guerra Mundial.
Foi depois da guerra que os edifícios mais altos passaram a se multiplicar no Centro Histórico, segundo ele. Candido acompanhou de perto a verticalização da cidade.
— No começo, eu fazia mais casa e chalé de madeira. Agora é mais prédio. E eu gosto mais de desenhar edifícios mesmo — diz o profissional, que já projetou mais de 200.
Ao mesmo tempo em que trabalhava na prefeitura (se aposentaria como funcionário público em 1975), Candido mantinha um escritório particular e ainda se dedicava a uma vida de atleta — lembrada em um quadro acima da sua mesa de desenho, montado por Nereu com várias fotos antigas. Candido foi remador do Grêmio Náutico União. Quando dava sede, bebia água do hoje poluidíssimo Guaíba — diz ele, ilustrando como faz tempo. Competiu no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina, arrematando até medalhas de um mundial em modalidade com quatro remadores em 1949. Também com o esporte, desafiou a idade. Parou de remar com mais de 70 anos.
Candido, que veio à Capital "quase analfabeto", concluiu o ensino primário e o ginásio enquanto trabalhava na prefeitura. Não fez Ensino Superior porque não era exigido na época.
— Eu já exercia a função de engenheiro e arquiteto. Não fazia muita falta, e seria difícil trabalhar, estudar e pagar a faculdade — comenta.
Obras simples e locais amplos
Sentado no banco do carona, Candido passou por pelo menos uma dúzia das suas obras na tarde da última quinta-feira, projetadas recentemente ou há cerca de 10, 30, 50 anos. Com exceção de um prédio novo na Rua Vera Cruz — com pórtico de pé direito duplo, detalhe que teve dedo de Nereu —, todas aparentavam simplicidade.
Candido nunca foi muito adepto de "firulas". O edifício que visitara alguns minutos antes na Rua Marechal Frota, com 42 apartamentos, salão de festas e garagem no subsolo, tinha um ar moderno e sofisticado, mas também expirava sobriedade. Outros dois prédios seus que encontrou no caminho, na Avenida Grécia, mostram que, meio século atrás, Candido já achava que menos é mais.
Essa regra não vale, porém, quando o assunto é o tamanho dos apartamentos.
— O pai não consegue fazer coisa pequena — comenta Nereu.
Vindo de uma era de imóveis espaçosos, Candido não consegue entender apartamentos de 60 metros quadrados com três quartos, quanto menos dividir um terreno já não muito grande entre três pequenos sobrados.
— Tem tanta terra por aí. Por que fazer as coisas tão pequenas? — questiona.
Candido não faz muito trabalho externo. Vez e outra, quando algum projeto que o padrasto ajudou a criar está ganhando forma, Nereu tira-o do ar-condicionado do escritório por alguns minutos para mostrar como está ficando — como fez na quinta.
— É bom, muito bom — relata o centenário, vendo o resultado do prédio da Marechal Frota. — É como no esporte: quando você ganha — e, graças a Deus, ganhei bastante —, parece que a gente se renova.
Por ideia de Nereu, Candido esticou o passeio até um prédio ainda em obras na Rua Gana, bairro Vila Ipiranga. O cliente, Olívio Klein, é um velho conhecido. Foram apresentados em 1958, quando Candido vistoriou um prédio que Klein estava construíndo.
— Era um gurizão — comenta Candido sobre o amigo que hoje bate à porta dos 80 anos.
Eles perderam as contas de quantas vezes trabalharam juntos.
— O trabalho dele é bom, 100%. E é uma pessoa que hoje não existe mais — diz Klein.
Da mesma forma que o construtor estava trabalhando com o neto, Candido demonstra satisfação por Nereu (que criou desde os dois anos) e sua primogênita, Miriam, engenheira civil, terem seguido seu legado.
Não que esteja marcando data para a aposentadoria, mas admite que a idade está pesando. Um costume que tinha até meses atrás, de ir a pé até o serviço, foi abandonado. E a audição não é mais a mesma — educado e doce, desculpou-se com a repórter quando não conseguiu entender alguma pergunta:
— Mas enquanto der, e enquanto ele me aguentar (diz apontando para o enteado), eu vou riscando.