
A anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, pauta prioritária da direita bolsonarista no Congresso, poderá ter o condão de isentar os envolvidos de culpa e de sanção penal também por atos anteriores e correlacionados à tentativa de golpe de Estado.
O texto atual do projeto também procura manter os direitos políticos dos alcançados pelo perdão. São fatores que, se aprovados no Congresso, podem assegurar que o ex-presidente Jair Bolsonaro fique livre de penalidades e condenações relacionadas aos atos golpistas.
Bolsonaro pode manter direitos políticos?
Caso agraciado pela benesse, Bolsonaro poderia até manter os direitos políticos, conforme prevê o artigo 8º do texto substitutivo do projeto de lei. A proposta prevê anistia coletiva aos envolvidos, sem nominar suspeitos ou condenados a serem beneficiados.
A avaliação de que Bolsonaro poderia receber o perdão é feita por uma parcela de operadores do direito, embora haja contrapontos afirmando que se trata de matéria interpretativa e que a concessão do indulto para supostos golpistas, sejam eles executores, incentivadores, ordenadores ou financiadores, é inconstitucional.
O que dizem juristas
Atualmente, o projeto de lei da anistia tramita na Câmara dos Deputados, sem previsão de votação em plenário.
— A anistia aos envolvidos por certo beneficiará a todos que, de alguma forma, tenham participado. Por isso, se na acusação contra o ex-presidente Bolsonaro há descrição fática de seu envolvimento neste evento (8 de Janeiro), naturalmente ele será beneficiado — analisa o advogado Lúcio Santoro de Constantino, especialista em direito criminal.
Na avaliação de Constantino, "a anistia alcança aqueles que, de alguma forma, concorreram ao fato apontado como delituoso, seja até através de ordens, financiamentos e auxílios, entre outros".
— Como uma espécie de perdão, tem a finalidade de firmar um esquecimento em nome da pacificação social com o apagar do fato criminoso. O seu efeito é retroativo, razão que alcança decisões condenatórias — afirma.
Para o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, uma lei dessa natureza não precisa nominar os seus beneficiados.
— Anistia é ato da União, via atuação do Congresso, soberano, e implica perdão, virada de página em definitivo. É ato genérico e diz respeito não a pessoas individualizadas, mas sim a certo acontecimento e consequências — diz o jurista.

Contexto
Na quarta-feira (26), a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) aceitou, por unanimidade, a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete de seus antigos colaboradores por uma tentativa de golpe para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, eleito presidente da República em 2022.
Bolsonaro e os demais respondem pelos seguintes crimes: tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, organização criminosa armada, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, além de deterioração de patrimônio tombado.
O projeto original de anistia é de autoria do ex-deputado federal Major Vitor Hugo (PL-GO), mas o texto foi reformulado por um substitutivo, de setembro de 2024, do deputado federal Rodrigo Valadares (União-SE), relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.
Divergências
A matéria é considerada controversa e experientes juristas apontam inconstitucionalidade ou caráter interpretativo que somente poderá ser sanado após a aprovação de uma lei e da publicação dos acórdãos de aceitação da denúncia contra Bolsonaro no STF e de possível condenação.
— Uma eventual lei anistiando os golpistas condenados e os processados, como Bolsonaro e outros, é inconstitucional. Um crime de golpe de Estado não é como crime comum. Fere os objetivos do Estado Democrático de Direito — avalia Lenio Streck, procurador aposentado do Ministério Público do Rio Grande do Sul, jurista e professor da Faculdade de Direito da Unisinos.
O docente ainda cita a ação que discutiu a constitucionalidade do indulto individual ao ex-deputado Daniel Silveira, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 964. Na ocasião, a validade do indulto foi derrubada.
— Há importantes elementos na ADPF 964. Ali já declara impossível fazer indulto coletivo para réus. Há limitações implícitas à anistia. A Argentina já mostrou isso. A anistia de que falam só tem uma função: criar uma forte crise institucional. Nada mais — pontua Streck.
Para o advogado Antônio Augusto Mayer dos Santos, especialista em direito constitucional, o caso é interpretativo e dependerá da nuance das palavras-chave dos acórdãos judiciais e do projeto eventualmente aprovado, tornando-se lei.
— O projeto substitutivo, logo na introdução, menciona a expressão dos crimes de motivações políticas, eleitorais e a esses conexos. A questão é o conexo. O que são motivações políticas, eleitorais e conexas? É prematuro avaliar se o projeto, neste momento, abarca ou não o ex-presidente Bolsonaro. No texto que existe hoje, pode ser interpretado pelo sim e pelo não. Até onde se estendem conexões e motivações? Hoje é lotérico — pondera Mayer dos Santos.
O que diz o projeto de lei da anistia
O texto do substitutivo do deputado federal Rodrigo Valadares, nos trechos mais relevantes, diz:
- Artigo 1º: Ficam anistiados todos os que participaram de manifestações com motivação política e/ou eleitoral, ou as apoiaram, por quaisquer meios, inclusive contribuições, doações, apoio logístico ou prestação de serviços e publicações em mídias sociais e plataformas, entre o dia 8 de janeiro de 2023 e o dia de entrada em vigor desta Lei.
- Parágrafo 1º: A anistia de que trata o caput compreende os crimes com motivação política e/ou eleitoral, ou a estes conexos, bem como aqueles definidos no Código Penal.
O artigo 1º, partindo de 8 de janeiro de 2023 como data-base, estende a anistia para os demais supostos fatos criminosos, anteriores e posteriores, desde que conexos ao golpismo. Isso poderia abarcar, na lógica da concessão do perdão, o plano conhecido como Punhal Verde e Amarelo, que teria o objetivo de assassinar Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes. O trecho consta em um parágrafo do artigo:
- Parágrafo 3º: Fica também concedida anistia a todos que participaram de eventos subsequentes ou eventos anteriores aos fatos acontecidos em 8 de janeiro de 2023, desde que mantenham correlação com os eventos acima citados.

Por fim, a proposta de lei busca garantir os direitos políticos dos beneficiados pela norma, de forma genérica. Registra o texto da proposta legislativa:
- Artigo 8º: Ficam assegurados os direitos políticos, e, ainda, a extinção de todos os efeitos decorrentes das condutas a si imputadas, sejam cíveis ou penais, para as pessoas que se beneficiem da presente lei.
O substitutivo de Valadares, ao trabalhar com a data de 8 de janeiro, estendendo a anistia para atos criminosos anteriores e posteriores, é uma mudança em relação à proposta do ex-deputado Major Vitor Hugo. No texto original, já modificado, a previsão era perdoar os crimes cometidos entre 30 de outubro de 2022, dia da eleição presidencial em segundo turno, e a data de entrada da lei em vigor.
Cenário político
Recentemente, o presidente do Senado, David Alcolumbre (UB-AP), afirmou que o projeto da anistia não faz parte da agenda da população brasileira. Nos bastidores, a avaliação é de que o parlamentar tem esfriado a discussão. Caso aprovado na Câmara, o projeto ainda precisa ser analisado no Senado.
Também há avaliações de que Bolsonaro não conseguiu demonstrar a mesma força política do passado na manifestação que aconteceu no dia 16 de março, no Rio de Janeiro, quando compareceram menos apoiadores do que em atos anteriores.
Líder da oposição na Câmara, o deputado federal Luciano Zucco (PL-RS) afirmou que iniciará a coleta de assinaturas para levar a pauta à votação no plenário em regime de urgência.
— O presidente Bolsonaro já falou em público que a anistia não está vinculada a ele. Acredito que ele não cometeu crime. Mas, se porventura a anistia tiver um reflexo que o atenda, não vejo problema algum — afirmou Zucco.

A deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) avalia que a melhor forma de evitar a entrada da proposta na pauta do Congresso é a pressão "de fora para dentro".
— Não é prioridade. Urgência é atualizar a tabela do imposto de renda e as políticas para baratear alimentos, mas sabemos que o bolsonarismo quer pautar a anistia, incluindo o Bolsonaro. Se o julgamento for sério, como foram os procedimentos até agora, ele será condenado e preso. Vai precisar de pressão. Um plano de lutas para exigir que não haja anistia. É a primeira vez que um golpe de Estado está sendo julgado, até para garantir que não aconteça mais — justificou Melchionna.