A série de reportagens "Os Segredos de Brizola" foi publicada em Zero Hora em setembro de 1999
Quando o retorno de Leonel Brizola ao Brasil completou 20 anos, em 1999, Zero Hora reconstituiu a trajetória do ex-governador no exílio. A reportagem foi baseada em depoimento do próprio Brizola e enriquecida com relatos de quem foi testemunha desse passado obscuro da História do Brasil.
À época, Brizola recebeu ZH em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, para uma entrevista de quatro horas, que é relembrada quando a sua morte completa 20 anos.
Sentado próximo a uma janela com vista para o mar, o ex-governador relembrou os fatos históricos e fez um balanço desses 15 anos de exílio impostos pela ditadura militar de 1964.
— Considero o exílio um sofrimento que, em princípio, pode conter algo de romântico, idealista, mas que depois vai se tornando de uma amargura tão grande, tão dolorosa. Você não é turista, não é estudante, é um apátrida. Os estrangeiros falam com uma franqueza tão dura, que nos fere profundamente. Foi uma experiência que não vai se repetir mais, ocorra o que ocorrer — diz Brizola.
Fuga disfarçado de PM
As areias da praia de Cidreira serviram de pista para o avião Cessna azul e branco prefixo PT-BSP pousar naquele clarear do dia 7 de maio de 1964. Escondido atrás dos gigantescos cômoros, vestido com farda de brigadiano e observando a chegada do bimotor, encontrava-se o inimigo número 1 do recém-implantado regime militar: Leonel de Moura Brizola.
Foi à beira do mar que o ex-governador, ex-prefeito e ex-deputado se despediu do Rio Grande do Sul e do Brasil para mergulhar em 15 longos e conturbados anos de exílio.
A saída do país — ao qual só retornaria no dia 6 de setembro de 1979, nove dias após o presidente João Figueiredo sancionar a Lei da Anistia — passou a dominar os pensamentos do então deputado federal pelo Rio um dia depois da reunião que teve com o presidente e cunhado João Goulart, em Porto Alegre.
O encontro, realizado na madrugada de 2 de abril de 1964, na casa do então comandante do 3º Exército, Ladário Telles, teve a participação de outros sete generais. Brizola tomou a palavra e propôs a organização da resistência ao regime militar. O plano passava pela nomeação, por Jango, de Ladário para o Ministério do Exército e de Brizola para o da Justiça. Jango seria levado a São Borja com proteção da divisão do Exército com sede em Santiago e ficaria por algum tempo no município. Enquanto isso, na Capital, começariam a ser tomadas as iniciativas de mobilização da população e de fortalecimento do Exército.
Ladário, que concordava com o plano — assim como seis dos sete generais presentes —, disse que o Exército estava unido e tinha armamento para 110 mil civis. O general colocou um porém: como legalista, só daria prosseguimento ao plano com autorização de Jango. O presidente, no entanto, chegara naquela noite à Capital decidido a não resistir. Alegou que não permaneceria na batalha se o preço a pagar fosse o derramamento de sangue.
No amanhecer daquele dia, Brizola foi descansar no sítio do então deputado estadual José Fidélis Ramos Coelho, em Gravataí, dias mais tarde invadido pela polícia. Ao escurecer, dirigiu-se à Assembleia Legislativa, já com a intenção de voltar ao Congresso para protestar contra o golpe. Foi dissuadido da ideia no dia seguinte, quando soube que Jango já estava a caminho do Uruguai por não se sentir seguro em São Borja.
Todas as informações davam conta de que a tendência era os militares me passarem o fogo. Não havia outra alternativa senão o exílio.
LEONEL BRIZOLA
Entrevista em 1999
Começava naquele momento um período de mais de um mês de clandestinidade em solo gaúcho. Não havia mais resistência popular no país, e Brizola passou a ver no exílio o caminho para reestruturar uma reação armada.
— Não foi uma fuga. Todas as informações davam conta de que a tendência era os militares me passarem o fogo. Não havia outra alternativa senão o exílio — afirmou Brizola em entrevista a ZH em 1999.
A primeira medida dura que Brizola tomou foi a de pedir que levassem a mulher, Neusa, e os três filhos para Montevidéu. O último encontro do casal ocorreu na casa do cunhado Joaquim Macedo, na Rua Dona Laura, em Porto Alegre. A essa altura, a perseguição ao ex-governador era intensa em todo o Estado — a polícia havia batido até na casa de sua mãe, Oniva, em Carazinho.
Antes de deixar o Estado, Brizola passou por várias residências de amigos. A todas teve de abandonar em razão da insegurança. O apartamento do vice-prefeito de Porto Alegre, Ajadil de Lemos, na Rua Duque de Caxias, a uma quadra do Palácio Piratini, foi o lugar em que permaneceu mais tempo e onde foi montada a operação de fuga.
— Não havia crianças no apartamento, e o Brizola ficou por lá até ir embora, pertinho do Piratini e dos militares — contou Hélio Ricardo da Fontoura, assessor do trabalhista na prefeitura e no governo, em entrevista em 1999.
Veranista de Cidreira, Fontoura foi o primeiro a se dirigir ao Litoral, a pedido do deputado João Caruso, para analisar os movimentos da maré e o melhor local de aterrissagem do avião de João Goulart.
Operação foi definida um dia antes
O caminho que levou o deputado Leonel Brizola para o exílio uruguaio foi decidido 24 horas antes da partida. Até então, eram cogitados dois trajetos. Um deles seria pelo aeroporto Salgado Filho, onde várias simulações foram realizadas para que o ex-governador pudesse entrar com segurança no avião conduzido pelo piloto particular de João Goulart, Manoel Soares Leães,o Maneco. O outro percurso, o escolhido por Brizola, era pelo Litoral (veja abaixo como foi o passo a passo).
Maneco, que já estava com o bimotor Cessna em Punta del Este, no Uruguai, na véspera da fuga recebeu uma carta com o plano da operação. O que garantia a veracidade do documento era a metade de uma nota de Cr$ 1 entregue com o documento por um emissário. A outra metade se encontrava com o próprio piloto.
Nenhuma ligação telefônica era feita em solo brasileiro. Os amigos mais próximos de Brizola passaram a promover ações paralelas para despistar a polícia. Era comum ver um trabalhista ligado a Brizola chegando ao centro de um município dirigindo um carro embarrado para desviar a atenção dos perseguidores.
No meio da madrugada do dia 7 de maio embarcaram num Fusca Brizola, sentado no banco traseiro, Ajadil, no banco dianteiro, e sua mulher, Lenir Pezzi Culau, no volante. O trio foi até o primeiro ponto da operação, a entrada escura do Hospital Moinhos de Vento. O combinado era Brizola passar para o carro de um outro amigo. Os relógios do ex-governador e do contato haviam sido acertados simultaneamente para evitar desencontros. Brizola permaneceu no local os cinco minutos combinados e mais outros cinco por sua própria conta. Tempos depois, em visita a Brizola no Uruguai, o contato chorou e revelou ter ficado com medo.
— É uma pessoa que se tornou importante na vida empresarial e social gaúcha. Acho que não contribui em nada eu dizer seu nome, não quero constranger ninguém — declarou Brizola, em 1999.
A ação dos militares era falha. Pude me movimentar em Porto Alegre com certa facilidade.
LEONEL BRIZOLA
Entrevista em 1999
O trio resolveu dar prosseguimento ao plano no mesmo carro. Do Moinhos de Vento, seguiu para a segunda etapa da operação, a casa de parentes de Lenir. A passagem pelo local foi a senha para que a família colocasse no automóvel uma barraca, anzóis e comida e partisse para o Litoral. Depois de passar por uma barreira do Exército, na Avenida Bento Gonçalves, e por um posto da Brigada Militar, em Viamão, sem ser reconhecido, o grupo seguiu em direção a Cidreira.
— A ação dos militares era falha. Pude me movimentar em Porto Alegre com certa facilidade — contou Brizola.
A 20 quilômetros da praia, o carro de Ajadil estragou. Depois de empurrá-lo para um desvio, os três permaneceram uns 30 minutos aguardando no escuro, na beira da estrada, a chegada do outro veículo.
O sinal para que Maneco pudesse aterrissar na praia eram a família pescando e três carros parados. Tão logo avistasse a movimentação, o piloto faria os procedimentos de pouso.
— Mal começou a nascer o sol ouvimos o ronco do avião, voando baixinho sobre a praia — relembrou o ex-governador.
Maneco hesitou inicialmente, já que havia apenas dois veículos. Quando o avião aterrissou, Brizola saiu de trás das dunas e correu sozinho na direção do Cessna. O bimotor levantou voo segundos depois, rumo ao sul do Estado, sobrevoando o mar para não chamar a atenção.
— Assim que vi o aceno do Brizola atrás dos cômoros aterrissei. Ele entrou com o avião já quase em movimento — conto Maneco a ZH em 1999.
O piloto de Jango lembrou ter pedido o capacete de brigadiano de Brizola como lembrança, mas o líder trabalhista respondeu que ele poderia ser útil no seu retorno ao Brasil. O ex-governador gaúcho entrou em terras uruguaias ainda pela manhã. Por volta das 9h30min desceu na localidade de Sarandi Grande, onde um contato uruguaio o aguardava de carro. Neusa, que estava morando em Montevidéu, foi ao seu encontro num balneário próximo. Lá os dois passaram 24 horas e seguiram rumo à capital em busca da legalização.
Trajeto percorrido por Brizola em maio de 1964
Porto Alegre
- Brizola deixa de madrugada o apartamento de Ajadil de Lemos e de sua mulher, Lenir, na Rua Duque de Caxias, ao lado do Viaduto Otávio Rocha. Os três dirigem-se de carro ao Hospital Moinhos de Vento. Depois de frustrado um plano de troca de veículo, vão à casa de parentes de Lenir. De lá, seguem de carro em direção ao Litoral.
Viamão
- O carro em que o ex-governador viaja passa por uma barreira do Exército e por um posto da Brigada Militar.
Cidreira
- Passado cerca de um quilômetro do centro de Cidreira, em direção ao Sul, Brizola esconde-se atrás de cômoros de areia e aguarda a chegada do avião que o levará para o exílio.
A viagem
- O Cessna conduzido pelo piloto Manoel Leães pousa no clarear do dia na beira da praia. Brizola entra no avião. Começa a última etapa da operação em solo brasileiro. O piloto sobrevoa o mar até a fronteira com Uruguai. O avião atravessa a fronteira e começa a sobrevoar o solo uruguaio.
Sarandi Grande
- Na pequena localidade a cerca de 150 quilômetros de Montevidéu, o piloto faz a aterrissagem. Brizola segue de carro para um balneário próximo, onde se encontra com sua mulher, Neusa.
Montevidéu
- Depois de 24 horas, Brizola e Neusa seguem para a capital do Uruguai de carro.
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