O ano de 2023 poderia ter entrado para a história como o último em que vigorou a democracia brasileira como a conhecemos. Quando uma turba revoltosa tomou de assalto a Praça dos Três Poderes, em Brasília, e invadiu as sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, por algumas horas houve dúvidas se os pilares do Estado brasileiro resistiriam ao dia 8 de janeiro. Bens tombados pelo patrimônio histórico e obras de arte de valor inestimável acabaram danificados ou destruídos, mas a democracia brasileira – ainda que fragilizada – resistiu à tentativa de golpe promovida por militantes de extrema direita. Garantido no poder, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva dedicou o primeiro ano de seu terceiro mandato a negociar com o chamado Centrão uma base mínima de sustentação política e a contrabalançar a pressão por aumento dos gastos públicos com exigências de respeito à meta fiscal. A exemplo da própria democracia, foi um ano em que o governo precisou andar na corda bamba.
Não faltou quem puxasse essa corda para um lado ou outro. No ataque de janeiro, ela quase arrebentou quando o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) foram vandalizados por extremistas de verde e amarelo. No final do ano, fracassada a tentativa de destituir o governo recém-eleito, o próprio STF passaria a sentenciar os primeiros condenados pela participação nos atos antidemocráticos com penas que chegaram a superar os 17 anos de prisão. Mas o malogro da conspiração não significou vida fácil para a nova gestão federal. O esforço para resgatar o tradicional modelo do presidencialismo de coalizão, enfraquecido durante o governo de Jair Bolsonaro, foi desafiado por um legislativo fortalecido, dominado pelos partidos do Centrão e controlado pela mão de ferro do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
– O ano foi marcado pela retomada da democracia como era antes do Bolsonaro, pela volta do presidencialismo de coalização, da tentativa de governar com apoio dos partidos novamente. Mas houve muitas dificuldades: o Executivo está mais enfraquecido em relação aos primeiros dois mandatos de Lula, e o Legislativo passou a ter quase uma agenda própria. Em votações mais complexas, a base do governo se divide ou até vota contra os interesses do Planalto – analisa a cientista política da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Maria do Socorro Sousa Braga.
Isso não impediu, por meio de duras negociações e ofertas de cargos de alto escalão ao Centrão, o avanço de pautas prioritárias para o governo federal como a reforma tributária. Para o cientista político e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rodrigo Gonzalez, o saldo das negociações políticas adotadas para fazer a máquina pública andar foi positivo para a atual gestão em 2023.
– O primeiro ano do governo pode ser considerado um sucesso se avaliado pelo lado pragmático. Flexibilizou o teto de gastos, encaminhou uma reforma tributária, ganhou a briga com o Banco Central na redução da taxa de juros, conseguiu formar uma base de apoio no Congresso. Por outro lado, sob o ponto de vista do PT, ou da esquerda do partido, boa parte das propostas de mudança ficou para depois, e o governo está sendo capturado pelo Centrão. Mas nada que não seja uma repetição dos governos anteriores do Lula – analisa Gonzalez.
O professor recorda que, no começo do ano, temia-se o risco de um enfrentamento entre os presidentes da República e da Câmara, que havia sido um aliado de Bolsonaro na gestão anterior.
– Os choques iniciais foram contornados, Lira negociou os seus interesses e tudo voltou ao padrão de sempre: me dá o que eu quero e eu voto o que você quer – complementa o cientista político.
O lado positivo desse novo/velho arranjo, na avaliação de Maria do Socorro, é mostrar à população que é possível governar o país combinando visões de esquerda, centro e direita, mas sem a necessidade de apelar aos extremismos. Lula acabou por fazer concessões que muitas vezes agradaram mais a representantes da direita do que ao próprio PT: a nomeação do conservador Paulo Gonet para a Procuradoria-Geral da República, por exemplo, contrariou até a presidente petista, Gleisi Hoffmann. A escolha de Gonet, contrário ao aborto e à política de cotas, por exemplo, ajudou a suavizar tensões envolvendo STF e Congresso.
Outras divergências internas também marcaram o terceiro mandato lulista. A insistência do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em cumprir a meta fiscal desagradou setores mais à esquerda focados em alavancar o desenvolvimento e programas sociais. Políticas públicas como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e o Programa de Aquisição de Alimentos foram revigorados, apesar das preocupações com o equilíbrio das finanças.
Outro ponto de discordâncias domésticas foi a possibilidade de extração de petróleo na Amazônia. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva afirmou que não é possível fazer concessões políticas para facilitar a exploração da área, que tem restrições por parte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Essa postura contraria um interesse do Ministério das Minas e Energia favorável, respaldado por um parecer da Advocacia-Geral da União, de explorar esse combustível na região. Lula declarou que é preciso pesquisar melhor a disponibilidade do combustível na região e que a eventual extração deve “ser uma decisão de Estado”.
O avanço de novas grandes reformas, como a administrativa, e o andamento de futuros projetos ficarão à mercê, a partir da virada do ano, de um novo clima político marcado pelas eleições municipais de 2024. A disputa deverá dificultar a tramitação e a aprovação de iniciativas que provoquem qualquer tipo de desgaste de seus apoiadores junto à população, o que poderia comprometer planos eleitorais e servir como um termômetro da avaliação popular em relação às forças partidárias.
– As eleições de 2024 definirão se o clã Bolsonaro ainda mantém importância ou se o bloco conservador que governou de 2019 a 2022 vai se dividir em 50 tons de direita, alguns talvez até apoiando candidatos ligados ao governo Lula. A eleição de 2024 é o primeiro ensaio para 2026, pois, hoje, as campanhas eleitorais nunca terminam, apenas passam para uma fase menos ativa. Também será um teste para Lula e o PT, se conseguem recuperar o prestigio perdido após 2014 – interpreta Rodrigo Gonzalez, da UFRGS.
Em relação a propostas que podem sair prejudicadas pelo ambiente eleitoral está a reforma administrativa – alinhavada na forma de uma emenda à Constituição por Bolsonaro, mas que acabou não sendo votada até o momento. O governo atual pretende encaminhar outro modelo de mudança, com base em diferentes projetos que não precisem alterar artigos constitucionais e medidas administrativas que não necessitem de aval do Congresso. Nesse caso, há dúvidas sobre a abrangência e a profundidade das novas regras.
O ano em números
- Estimativa do PIB nacional: 2,92%*
- Inflação no país (até novembro): 4,04%*
- Projeção final da inflação em 2023: 4,46%*
* Segundo o Boletim Focus