Eram 5h45min de quinta-feira, 28 de setembro, quando oito policiais e promotores de Justiça chegaram a uma vistosa casa da Volta da Charqueada, bairro pouco povoado e de casas isoladas a 10 quilômetros do centro de Cachoeira do Sul, na região central do Estado. Driblando o portão de ferro de dois metros de altura, o grupo usou um acesso secundário, acordou um vizinho para servir de testemunha e se dirigiu ao imponente casarão nos fundos do terreno.
Às 6h em ponto, bateram à porta. Sem resposta, arrombaram a entrada e seguiram para o quarto principal da residência, onde um homem dormia em sono profundo. Em frente à cama, um prato sobre a cômoda continha 2,9 gramas de cocaína. Acordado pelos policiais e vendo a droga ser apreendida, o homem despiu-se e passou a polvilhar o corpo com Pó Pelotense, um talco medicinal usado para tratamento de feridas na pele.
Seria mais uma cena inusitada numa operação de rotina, não fosse o alvo a maior autoridade do município, o prefeito José Otávio Germano (PP). Filho pródigo de uma tradicional família de Cachoeira, José Otávio foi vereador, deputado estadual e federal, secretário da Segurança Pública e ministro-adjunto.
Na virada dos anos 2000, era tido como um dos mais promissores políticos gaúchos, quiçá futuro governador. Desde então, se envolveu num cipoal de escândalos de corrupção temperados com doses de sexo e drogas que culminaram no afastamento do cargo de prefeito, determinado mês passado pelo Tribunal de Justiça (TJRS).
Aos 61 anos, distante da família e isolado pelo partido, José Otávio vive uma rotina de excessos que o levou da crônica política à policial. Na operação Fandango — assim batizada em alusão à ponte que dá acesso ao município —, 88 agentes cumpriram 17 mandados judiciais.
Vasculhando residências, empresas e repartições públicas das 6h às 20h30min, levaram contratos, celulares, computadores, anotações e pendrives. Além da cocaína, foram apreendidos dois revólveres, um deles com um ex-assessor que havia sido preso em março com 14 gramas da droga próximo à entrada da casa de José Otávio.
Com o prefeito, caiu o núcleo duro do governo — cinco secretários e três assessores diretos, entre eles os titulares da Fazenda, da Administração e do Planejamento, todos afastados dos cargos por 180 dias por decisão da 4ª Câmara Criminal do TJRS. Sem o chefe do Executivo e um terço do secretariado, a cidade ficou acéfala e parte dos servidores não recebeu salário no dia certo.
O despacho da desembargadora Gisele Azambuja também suspendeu pagamentos a uma empresa de asfalto e outra de terraplanagem. Os agentes investigam ainda contratos de transporte público, iluminação e recolhimento de lixo. Alegando sigilo processual, o Ministério Público (MP) não detalha a operação, mas GZH apurou que os negócios suspeitos movimentam ao menos R$ 11,4 milhões em recursos públicos.
A batida foi a face visível de mais de um ano de investigação. Municiados por um delator, os promotores têm examinado indícios de fraudes em licitação, superfaturamento e pagamento de propina. Os alvos eram monitorados dia e noite, com filmagens do que seria recolhimento e entrega de dinheiro.
Embora assustada com a movimentação frenética de homens de preto, a população não foi surpreendida pela operação policial. No circuito político, aliados e adversários admitem que esperavam a eclosão de um escândalo. Duas CPIs apontando servidor fantasma e pagamento irregular de horas extras já haviam sido abafadas na Câmara de Vereadores, controlada pelo governo.
— Isso que aconteceu agora não é surpresa para ninguém aqui — comenta a vereadora de oposição Telda Assis (PT).
— Demorou. Desde a campanha, eu percebi que ele não era o que dizia — afirma o vereador Luiz Alberto Paixão (PP), correligionário que ajudou a escrever o plano de governo e denunciou ao MP supostas ilegalidades no contrato de asfaltamento de ruas do Centro.
— Há um alívio no funcionalismo. A situação estava muito tensa — diz o procurador-jurídico do município, Hélio Costa Garcia Jr., reempossado no começo do mês pela prefeita em exercício, Angela Schuh, após ser demitido por José Otávio em abril do ano passado.
Eleição de prefeito sugeria renascimento político
Eleito com 31,6% dos votos em 2020, José Otávio Germano reencarnava uma esperança de renascimento pessoal, familiar e para boa parte dos 80 mil cachoeirenses. Vereador mais votado na sua estreia nas urnas, em 1988, emendou dois mandatos de deputado estadual e quatro de federal, sempre irrigando o município com verbas públicas. Nesse período, perdeu apenas uma eleição, em 1998, quando concorreu a vice-governador na chapa de Antonio Britto (MDB). À época, era o principal nome do PP gaúcho e apontado como futuro inquilino do Piratini.
Os anos seguintes, porém, foram inclementes com ele. Citado sucessivamente nas operações Rodin, de fraudes no Detran, Solidária, envolvendo irregularidades em prefeituras da Região Metropolitana, e Lava-Jato, que apurava desvios na Petrobras, foi condenado por improbidade administrativa e minguando politicamente.
Ao mesmo tempo, sobrevieram a dependência química e os escândalos sexuais. Afastado durante quase metade do derradeiro mandato de deputado para tratar insuficiência renal e inflamação crônica na pele, em 2018 ele acordou com duas garotas de programa transexuais cobrando pagamento na frente do prédio onde morava, em Porto Alegre. Não era a primeira vez. Três meses depois, não se reelegeu.
Sem mandato, distante dos irmãos e das filhas, José Otávio refugiou-se em Cachoeira. Foi internado para reabilitação, casou-se de novo e voltou à política. À frente de uma robusta coalizão eleitoral e exibindo exame toxicológico aos aliados, venceu a eleição com 10 pontos percentuais de vantagem sobre o segundo colocado.
Para os eleitores, a vitória significava ter como prefeito o influente deputado de outrora, capaz de atrair recursos federais. Para a família, o retorno ao poder local. Para José Otávio, um recomeço. Dez meses antes, ele fora condenado a pagar R$ 10 mil a uma das garotas de programa, Emilly Silveira Dávila, a título de "serviços prestados e não pagos".
José Otávio começou com espírito reformista. Seu primeiro ato, no dia da posse, foi abrir licitação para o transporte público, cuja única operadora da cidade pertence à sua família. Fazia discursos vibrantes, prometia pacotes de obras, aprovou novo plano diretor e reformou a previdência.
Aos poucos, porém, foi sumindo da rotina administrativa. Transferiu à vice-prefeita os compromissos fora de Cachoeira e pouco ia ao gabinete. Não raro, faltava a agendas com deputados e senadores e não frequentava eventos, como a abertura da tradicional Feira Nacional do Arroz (Fenarroz).
— Ele chegou a ficar 21 dias sem vir à prefeitura — conta Hélio Garcia Jr.
A tentativa de localizá-lo era difícil pois não usava WhatsApp e trocava o número de celular com frequência, preferindo aparelhos antigos para atender e de assessores para telefonar. Ao mesmo tempo, cada vez surgiam mais comentários sobre festas que viravam a noite no casarão da Volta da Charqueada.
Nas raras aparições públicas, José Otávio discursava com voz pastosa, interrompida por acessos de tosse. Em junho, gerou aflição ao dizer em entrevista que teste na água distribuída no município havia detectado 20 bactérias. Instado pelo vereador Paixão a apresentar o resultado do exame, respondeu por escrito "não possuir laudo oficial sobre a análise".
Saúde enfrenta crise no município
Na ausência do prefeito, os problemas se acumulavam, provocando um entra e sai no secretariado. Em 31 meses de governo, foram 42 trocas nos 16 postos de primeiro escalão. Na Saúde, quatro titulares gerenciaram um setor em crise permanente.
Com pagamentos em atraso, o consórcio intermunicipal que administra os serviços ameaça romper o contrato. Na farmácia municipal, não há fitas para o comerciante Girlei Lopes testar a diabete do filho Isaac, 13 anos. No Centro Social Urbano, a dona de casa Caroline Fortes não consegue consulta para averiguar uma íngua saliente no pescoço da filha Manuela, quatro anos. Nos postos e no hospital, faltam insumos básicos como álcool, soro, gaze, fraldas e sabonete.
— Falta até esparadrapo — admite a vice-prefeita Ângela Schuh.
De uma hora para outra, ficamos sem prefeito, secretário da Fazenda, Administração, Planejamento, Meio Ambiente e Interior. Meu foco agora é retomar a qualidade dos serviços e a credibilidade do governo, que está bastante abalada.
ÂNGELA SCHUH
Prefeita em exercício de Cachoeira do Sul
Desempregada, Greice Panta luta para tratar o filho Gabriel, dois anos. Diagnosticado com autismo há um ano, o menino só teve a primeira consulta semana passada, no município vizinho de Caçapava do Sul.
— Fomos num carro da prefeitura, três adultos e três crianças, o Gabriel no meu colo, sem cinto. Lá, o atendimento demorou e as crianças se descontrolaram. O Gabriel teve crise de choro e urticária emocional, se desregulou completamente. O único suporte que temos é nas outras mães — desabafa Greice.
No dia em que a polícia entrou em sua casa, José Otávio estava de atestado por pneumonia. Além da operação do MP, ele responde inquérito na Justiça federal do Rio e uma ação na Justiça eleitoral de Brasília. Também é investigado na Polícia Federal por suposta rachadinha na eleição de 2020, quanto teria recebido dinheiro do fundo eleitoral destinado aos candidatos a vereador. A promotoria local apura ainda suspeitas de desvios no repasse do benefício de prestação continuada, fraude em licitação e no passe livre de ônibus, nepotismo e irregularidade na contratação de cargos em comissão.
Na prefeitura, Ângela Schuh tenta reconstruir a gestão. Além de buscar nomes para recompor o governo, ela prepara uma leva de exonerações — ao menos 30 membros do staff de José Otávio devem ser demitidos.
— De uma hora para outra, ficamos sem prefeito, secretário da Fazenda, Administração, Planejamento, Meio Ambiente e Interior. Meu foco agora é retomar a qualidade dos serviços e a credibilidade do governo, que está bastante abalada — suspira a prefeita em exercício.
Contraponto
No último dia 6, GZH tentou falar com o prefeito afastado durante 40 minutos, diante da casa dele, em Cachoeira, mas ele não atendeu aos chamados. Dois advogados que o defendem em outras causas também declinaram, dizendo não ter procuração para agir no processo de afastamento. Segundo o TJRS, o prefeito ainda não constituiu advogado nos autos. Familiares procurados tampouco quiseram comentar a situação. Na sexta-feira (13), ele foi internado em uma clínica.
No dia da operação policial, José Otávio divulgou uma nota oficial (leia abaixo) dizendo se sentir violentado.
A NOTA DE JOSÉ OTÁVIO GERMANO
Leia a íntegra da nota emitida por José Otávio Germano no dia da operação policial, em 28 de setembro.
"Fui acordado violentamente na minha casa, com a quebra da porta, hoje 28/09 às 6h com revólver em punho. Cerca de dez policiais e uma promotora. Estava dormindo sozinho em casa. Procuravam computadores (não tenho em casa), procuravam cofre (não tenho em casa e em lugar nenhum). Procuravam armas (não tenho nenhuma). Me perguntavam onde estava o dinheiro. Não tinha nada em casa.
Procuraram droga. E confundiram pó pelotense com droga, pois utilizo em minhas feridas e assaduras por recomendação médica. Pedi para fazerem o teste ou algo do tipo e não quiseram fazer. Já saíram me acusando. Ao lado de onde eles encontraram a suposta droga que eles falam estavam os potes dos pós pelotenses, o que comprova que nunca teve droga alguma.
Escrevo esta nota sem saber nada que consta no processo. Não preciso ler para me manifestar. Não existe qualquer ato meu, enquanto prefeito, que incorra em qualquer ilegalidade (corrupção, roubo, favorecimento, rachadinha e etc). Se uma só pessoa disser que exigi vantagens enquanto prefeito, eu renuncio meu mandato imediatamente.
Não tenho caderneta de poupança, não tenho aplicações, não tenho bens.
Basta um exame superficial em minha conta bancária. Tenho 30 anos de mandato público, sempre pelo voto direto das pessoas. Fui vereador, deputado estadual (2 vezes), presidente da Assembleia, ministro dos Esportes e deputado federal em quatro mandatos.
Estou triste. Violentado. Me sinto perseguido. A minha avaliação nos dois primeiros anos de gestão, em institutos confiáveis, do próprio Jornal do Povo, obtive 8,9 de nota, o que comprova que nosso governo está no caminho certo.
Nunca recebi empresários em minha residência. Operei, enquanto prefeito, duas vezes o fêmur, duas vezes o quadril e coloquei prótese total no joelho e hoje me recupero de uma grave pneumonia em casa. Nestes períodos acompanhei tudo através de reuniões e ligações com o secretariado.
Tudo isto sem nenhuma acusação. Mostra uma operação política, midiática, que visa atingir a mim e ao meu grupo de maneira sórdida e traiçoeira. Os cachoeirenses me conhecem há 60 anos. Minha história de vida é pública. Minha consciência está tranquila. Nunca fiz nada ilegal enquanto prefeito de Cachoeira do Sul. A dor no coração, não sei se passa. Mas sei que a verdade dos fatos virá à tona rapidamente.”