As obras anunciadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante as agendas oficiais na Argentina e no Uruguai estão em diferentes etapas e reúnem uma série de complexidades e incertezas. O certo é que o Rio Grande do Sul, fronteiriço com os dois países vizinhos, poderá ser beneficiado pelos investimentos, que preveem interligação rodoviária, hidroviária e transporte de energia.
Reunido com os presidentes da Argentina, Alberto Fernández, e do Uruguai, Luis Lacalle Pou, Lula mencionou empreendimentos de grande porte que podem gerar investimento de cerca de R$ 4,9 bilhões. O maior aporte, de R$ 4,6 bilhões, está relacionado à construção de um gasoduto de 600 quilômetros entre Uruguaiana e Porto Alegre para trazer o gás argentino extraído da reserva de Vaca Muerta, na província de Neuquén.
A situação mais avançada é a construção da ponte entre Porto Xavier, no noroeste gaúcho, e San Javier, na Argentina. Hoje, a ligação entre as cidades é feita de balsa. A obra consta no plano dos cem dias do Ministério dos Transportes e virou uma das prioridades.
Confira, em uma sequência de reportagens, o panorama das quatro principais obras citadas por Lula na turnê pela América do Sul, realizada na segunda quinzena de janeiro de 2023. Nesta primeira parte, entenda a situação da construção do gasoduto de origem argentina.
Gasoduto Presidente Néstor Kirchner
A Argentina está fazendo uma obra de grande vulto para colocar em operação o Gasoduto Presidente Néstor Kirchner. O primeiro trecho está em construção, o que permitirá transportar gás por 583 quilômetros de dutos desde a reserva de Vaca Muerta, em Tratayén, até Saliquelló, na província de Buenos Aires. Já foram aportados pelo governo vizinho 180,4 bilhões de pesos, o equivalente a quase R$ 5 bilhões, e a Argentina tem uma demanda crescente por recursos. Foi nesse contexto e ainda sem detalhes que Lula mencionou a possibilidade de o BNDES financiar a obra e, no futuro, garantir a chegada do gás argentino no Brasil, por meio da fronteira gaúcha.
Há incertezas quanto ao futuro da ideia porque, embora tenha sido mencionada por Lula, não existe nada tramitando formalmente no Brasil para o investimento. Consultado pela reportagem, o Ministério de Minas e Energia (MME) disse que o projeto é de responsabilidade da Argentina e que somente o governo daquele país poderia fornecer informações. Já o BNDES afirmou que "não existe demanda ou previsão de financiar projeto de serviços de infraestrutura no Exterior". A instituição destacou que qualquer alteração na política de gestão "passará necessariamente por um entendimento com o Tribunal de Contas da União".
Em nota, o banco de fomento completou: "Os esforços do BNDES são no sentido de alavancar a exportação de produtos e bens produzidos no Brasil, gerando emprego e renda em nosso país".
O primeiro trecho do gasoduto alcança a província de Buenos Aires, onde está a massa da população, e tem o objetivo de atender a demanda interna. Os argentinos usam o gás em várias frentes, desde a industrial até a residencial, e o consumo é maior no inverno por causa do frio. Sem o gasoduto para escoar a produção de Vaca Muerta, o país ainda precisa importar o gás boliviano nas épocas de alta demanda.
O segundo trecho se estenderia até San Jerónimo, na província de Santa Fé. Esse terminal está previsto para ficar próximo da fronteira brasileira e dele seria feita uma conexão até Uruguaiana. Ramificações estão previstas para chegar ao Chile. Informações obtidas junto à Embaixada da Argentina no Brasil indicam que o BNDES poderá financiar as importações necessárias para a construção do segundo trecho do gasoduto, com fornecimento dos produtos por indústrias brasileiras.
Caso o projeto seja levado adiante, um gasoduto de cerca de 600 quilômetros teria de ser construído entre Uruguaiana e Porto Alegre, para fazer o gás chegar onde há mais demanda energética. O custo estimado disso, em 2019, era de R$ 4,6 bilhões.
Presidente da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs), Gilberto Petry afirma que o setor da construção pesada avalia o gasoduto positivamente. Seria uma alavanca para o nicho. Ele entende que a estrutura seria uma alternativa ao Gasbol, gasoduto que traz o gás desde a Bolívia até Porto Alegre.
— Seria extremamente positivo para o Rio Grande do Sul. O Gasbol já está no limite — diz Petry.
Outra questão acerca da viabilidade de trazer o recurso argentino até Porto Alegre tem relação com a oferta e a demanda. Diretora de Gás Natural do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), Sylvie D'Appote diz que a necessidade atual do mercado brasileiro é de cerca de 55 milhões de metros cúbicos de gás por dia. Somente a Petrobras já é operadora majoritária dos gasodutos Rota 1 e Rota 2, que escoam o gás natural gerado a partir da exploração de petróleo no pré-sal, na Bacia de Santos. A capacidade desses dois equipamentos permite transportar 30 milhões de metros cúbicos por dia. Para 2024, a previsão da Petrobras é de completar o sistema integrado com o início da operação do Rota 3, o que irá ampliar o escoamento de gás natural do pré-sal para até 44 milhões de metros cúbicos ao dia.
A dúvida é de onde virá a demanda para absorver tanto gás. Quando tem mais oferta do que demanda, a competição é no preço. Vai ganhar o melhor, o mais barato. Vejo o gás argentino como uma oportunidade para o mercado brasileiro, mas com várias interrogações.
SYLVIE D'APPOTE
Diretora de Gás Natural do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP)
Soma-se ao patamar a operação do Gasbol, que traz a fonte energética da Bolívia, e mais o gás natural liquefeito (GNL) que é comprado de fornecedores do mundo inteiro e chega ao país de navio. É nesse contexto de oferta que ingressaria no Brasil o produto argentino. O gasoduto entre Uruguaiana e Porto Alegre teria capacidade de transportar 15 milhões de metros cúbicos por dia.
— Não acho que exista no Rio Grande do Sul toda essa demanda. Teria de levar para outros Estados, inclusive para São Paulo. A demanda brasileira é grande e pode crescer, mas o gás argentino vai competir com outras fontes. Tem toda uma equação econômica para vermos se ele consegue chegar de forma competitiva — diz Sylvie.
Ela entende que uma oferta crescente de gás poderá baixar os preços do produto no Brasil e incentivar o crescimento da procura.
— A dúvida é de onde virá a demanda para absorver tanto gás. Quando tem mais oferta do que demanda, a competição é no preço. Vai ganhar o melhor, o mais barato. Vejo o gás argentino como uma oportunidade para o mercado brasileiro, mas com várias interrogações — avalia Sylvie.
Outro aspecto discutido em relação ao produto argentino, de xisto, é a questão ambiental. Os Estados Unidos, por exemplo, fazem esse tipo de exploração. A França proíbe. O xisto é uma rocha sedimentar e, para separar o gás, é preciso aplicar água em alta pressão, técnica chamada de fracking ou fraturamento hidráulico. Nos Estados Unidos, houve casos de contaminação de lençóis freáticos no passado.
Saiba mais
- A construção do gasoduto entre Uruguaiana e Porto Alegre é um projeto antigo da Transportadora Sulbrasileira de Gás (TSB).
- Em maio de 2000, a empresa concluiu a fase um do gasoduto, que consiste em dois trechos de 25 quilômetros cada. Um deles liga a fronteira argentina com Uruguaiana e abastece com gás a usina termelétrica da cidade. O outro trecho inicia em Canoas: de lá, o gás boliviano é levado como suprimento para o Polo Petroquímico, em Triunfo.
- A parte maior do projeto, com a construção subterrânea de um gasoduto de 600 quilômetros entre a fronteira oeste e a Capital, acabou não avançando e, agora, voltou à discussão após as declarações do presidente Lula na Argentina.