As obras anunciadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante as agendas oficiais na Argentina e no Uruguai estão em diferentes etapas e reúnem uma série de complexidades e incertezas. O certo é que o Rio Grande do Sul, fronteiriço com os dois países vizinhos, poderá ser beneficiado pelos investimentos, que preveem interligação rodoviária, hidroviária e transporte de energia.
Reunido com os presidentes da Argentina, Alberto Fernández, e do Uruguai, Luis Lacalle Pou, Lula mencionou empreendimentos de grande porte que podem gerar investimento de cerca de R$ 4,9 bilhões. O maior aporte, de R$ 4,6 bilhões, está relacionado à construção de um gasoduto de 600 quilômetros entre Uruguaiana e Porto Alegre para trazer o gás argentino extraído da reserva de Vaca Muerta, na província de Neuquén.
A situação mais avançada é a construção da ponte entre Porto Xavier, no noroeste gaúcho, e San Javier, na Argentina. Hoje, a ligação entre as cidades é feita de balsa. A obra consta no plano dos cem dias do Ministério dos Transportes e virou uma das prioridades.
Confira, em uma sequência de reportagens, o panorama das quatro principais obras citadas por Lula na turnê pela América do Sul, realizada na segunda quinzena de janeiro de 2023. Nesta segunda parte, veja o que já se sabe sobre o plano, que ainda está em fase de elaboração, de construir uma hidrovia que ligará Brasil e Uruguai.
Curso 220 quilômetros
A ideia de conectar o Uruguai e o Brasil por uma hidrovia surgiu em 1961, quando João Goulart era o presidente brasileiro. De lá para cá, o projeto não avançou, mas ganhou certo impulso em 2010, quando os então presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e do Uruguai, José Mujica, assinaram um acordo de transporte fluvial.
Em 2022, a União recebeu a doação de estudos de viabilidade para a possível licitação de concessão da hidrovia. As equipes técnicas do governo federal avaliaram que o material precisava de aprimoramentos. O Ministério dos Portos e Aeroportos recebeu, até o dia 27 de janeiro de 2023, duas propostas de consultorias interessadas em refazer os projetos. Elas serão analisadas e uma será contratada pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). Ou seja, o estágio ainda é inicial e, depois de finalizados os projetos técnicos, deverão acontecer as etapas de licitação, licenciamento e obras de dragagem para a retirada de sedimentos do fundo d'água e liberação dos canais de navegação.
A hidrovia está prevista para sair de um porto no Rio Tacuarí, no Uruguai, em região próxima da cidade de Rio Branco, que faz fronteira com Jaguarão, no Rio Grande do Sul. O curso seguiria pela Lagoa Mirim, ingressaria em águas brasileiras e acessaria o Canal São Gonçalo, estreito aquático que faz a ligação entre as lagoas Mirim e dos Patos. Cumprido o trajeto, a hidrovia, com extensão total de 220 quilômetros, chegaria até o Porto de Rio Grande. Ir ao terminal de Pelotas também seria possível.
O Uruguai emprega energia na tentativa de tirar a hidrovia do papel. Diplomatas do país atuam junto à Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) na análise de estudos já realizados. Agora, com a passagem de Lula pelo país vizinho, em agenda oficial com o presidente Luis Lacalle Pou, a pauta voltou a ganhar força.
Do lado uruguaio, um grupo de empresários faria os investimentos na construção do porto. A estimativa é de que seriam necessários até R$ 50 milhões para fazer a hidrovia, considerando a cotação atual do dólar, na faixa dos R$ 5. A cifra garantiria a realização das batimetrias, radiografia que indica a característica do solo debaixo d'água, os licenciamentos ambientais, as dragagens de sedimentos e a sinalização com boias.
Um trecho de 22 quilômetros do Canal São Gonçalo, numa região chamada Sangradouro, já foi identificado em avaliações preliminares como o ponto crítico que demanda mais dragagem, informa Guillermo Valles, embaixador do Uruguai no Brasil.
— O custo é mínimo. É uma pequena intervenção que pode ter impacto econômico e social em regiões deprimidas, de pouco desenvolvimento. Uma barcaça pode levar o equivalente a 90 caminhões de mercadorias — diz Valles.
Para o Uruguai, o principal interesse é levar produtos da sua região de fronteira com o Brasil até o Porto de Rio Grande e, de lá, exportar para o mundo. Nessa zona uruguaia, o trajeto até o Porto de Montevidéu é de 450 quilômetros. O longo caminho, a ser percorrido por rodovias, encarece o produto e empobrece essa área do país, onde estão departamentos como o de Treinta y Tres. Já a distância para o Porto de Rio Grande é de 220 quilômetros, mas isso depende da concretização da hidrovia.
O mais importante de tudo é que os produtores dessas regiões terão competitividade. Isso permitiria usar até um milhão de hectares de solo fértil que hoje não está produzindo alimentos por falta de logística. Fica longe, caro e não se produz. Vai mudar a matriz produtiva da região, do lado uruguaio e brasileiro.
GUILLERMO VALLES
Embaixador do Uruguai no Brasil
Valles diz que, atualmente, os principais produtos que o Uruguai pretende transportar por água até o principal porto gaúcho são arroz, madeira e cimento. Ele afirma que áreas até então improdutivas ganharão mais competitividade com a opção do transporte hidroviário, o que barateia o custo da logística.
— O mais importante de tudo é que os produtores dessas regiões terão competitividade. Isso permitiria usar até um milhão de hectares de solo fértil que hoje não está produzindo alimentos por falta de logística. Fica longe, caro e não se produz. Vai mudar a matriz produtiva da região, do lado uruguaio e brasileiro — aposta Valles.
Gerente de Planejamento da Portos RS, empresa pública estadual que faz a gestão do Porto de Rio Grande, Fernando Estima avalia que a concretização e manutenção da hidrovia dependem de uma aposta de Estado. Ele diz que não há volume de cargas suficiente para manter a operação de uma hidrovia pedagiada, a partir de um processo de concessão à iniciativa privada. Por isso, a alternativa é a efetivação de investimentos públicos, com visão de médio e longo prazo.
— A Portos RS vê com muito bons olhos esse projeto e trabalha para auxiliar na execução. Temos sido parceiros do governo federal e da embaixada uruguaia. Os principais ganhadores serão os produtores uruguaios e brasileiros, que terão nova alternativa de frete. E o segundo maior vencedor é a descarbonização das cargas. Você joga isso na hidrovia e reduz a emissão de carbono dos caminhões — afirma Estima.