O investimento público federal com coleta de lixo, um serviço essencial para o bem-estar da população, virou foco de despesas milionárias crescentes e fora do padrão nos últimos anos. Nas mãos do Congresso e do governo, a compra e a distribuição de caminhões de lixo para pequenas cidades saltaram de 85 para 488 veículos de 2019 para 2021, um aumento de 474%, conforme apuração do jornal O Estado de S. Paulo.
Avaliados com cuidado, esses gastos revelam transações como a de uma cidade do interior de Alagoas que tem menos lixo do que caminhões para recolhê-lo ou a diferença de R$ 114 mil no preço de veículos iguais, comprados no espaço de apenas um mês.
Durante dois meses, a reportagem do Estadão analisou cerca de 1,2 mil documentos referentes à aquisição desses veículos com verbas do orçamento federal, incluindo relatórios, planilhas e vídeos, num total de 7,7 gigabytes.
A distribuição de caminhões compactadores de lixo é usada por senadores, deputados e prefeitos para ganhar a simpatia e o voto dos eleitores de pequenas cidades, onde a chegada desse tipo de auxílio é visível e faz enorme diferença. Até agora, o governo já destinou R$ 381 milhões para essa finalidade — a reportagem identificou indícios de pagamentos inflados de R$ 109 milhões.
A diferença dos preços de compra de modelos idênticos, em alguns casos, chegou a 30%. Em outubro passado, por exemplo, o governo adquiriu um modelo de caminhão por R$ 391 mil. Menos de um mês depois, aceitou pagar R$ 505 mil pelo mesmo veículo
Há casos também em que o governo recebeu veículos menores do que o comprado sem reaver a diferença de preço. Um município de 8 mil habitantes ganhou três caminhões compactadores num período de um ano e três meses, enquanto cidades próximas não têm nenhum. Até um beneficiário do auxílio emergencial ganhou licitações para fornecer caminhões de lixo.
Os veículos também são destinados a pequenas cidades sem qualquer plano para construção de aterros sanitários, como determinado em lei. No Piauí, por exemplo, o lixo coletado é jogado em terrenos a céu aberto em 89% das cidades.
"Lixociata"
A chegada dos caminhões de lixo vira uma atração em alguns lugarejos. Em Brasileira (PI), a prefeita Carmen Gean (Progressistas) entregou o mesmo veículo duas vezes. Em Mairipotaba (GO), houve uma espécie de "lixociata" — uma carreata para aplaudir o caminhão de lixo.
Em agosto do ano passado, o senador e ex-presidente Fernando Collor de Mello (PTB-AL) divulgou foto ao lado do caminhão de lixo na cidade de Minador do Negrão (AL). Comprado com recursos de emenda parlamentar do senador, o caminhão é um dos maiores disponíveis no mercado, com 15 metros cúbicos. Para encher o veículo, que custou R$ 361,9 mil, a cidade leva dois dias.
Especialistas em gestão de resíduos não recomendam a utilização desses equipamentos mais potentes em municípios com menos de 17 mil habitantes. Os caminhões são caros, demandam funcionários preparados para operá-los e têm alto custo de manutenção — reparos no compactador precisam ser feitos em oficinas especializadas.
Um estudo de auditores do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro considera o uso de caminhões compactadores em cidades com menos de 17 mil habitantes "desaconselhado sob a ótica financeira". A cidade que recebeu o caminhão compactador de Collor tem 5.315 habitantes. O adequado para essas cidades seria o uso de caminhões caçamba.
Distribuição
Barra de São Miguel (AL), cidade governada por Benedito de Lira (Progressistas), pai do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas), ganhou três caminhões compactadores, do modelo grande, em 2020 (duas unidades) e 2021 (uma unidade), que ficam, na maior parte do tempo, parados. O município tem 8,43 mil habitantes.
Enquanto isso, a 80 quilômetros dali, a cidade de Marimbondo, com 13,2 mil moradores, não recebeu nenhum veículo apesar de insistentes pedidos da prefeita Leopoldina Amorim (PSD).
— Já pedi a Fernando Collor, já pedi ao governador, já pedi ao Arthur Lira. Pedi a todo mundo. Até agora nenhum filho de Deus lembrou. Estou quase maluca, esperando que chegue esse caminhão — disse a prefeita.
Porto Alegre do Tocantins, com 3,2 mil habitantes, recebeu num período de cinco meses dois caminhões. Seriam necessários quatro dias e meio para encher os dois veículos, considerando a quantidade de lixo produzida na cidade. O prefeito Rennan Cerqueira (PL) disse ao Estadão que pediu apenas um, mas recebeu dois.
— Um (parlamentar) me ofereceu e o outro fui eu que pedi. O meu lixo aqui é muito — disse, desligando o telefone quando perguntado a quem se referia.
Dimensionar corretamente a quantidade de lixo produzido por habitante é o principal parâmetro para calcular a necessidade do município e evitar sobrepreço ou superfaturamento na compra de caminhões, segundo o Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas. Ao não seguir esse parâmetro, o governo abre caminho para possíveis fraudes.
"Alinhamento"
A compra de caminhão compactador de lixo disparou em 2020, logo depois que o centrão (bloco de partidos como PL, PP e Republicanos) aliou-se governo Bolsonaro. Foi no mandato do atual presidente que órgãos como a Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e, principalmente, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) intensificaram a aquisição dos veículos.
Procurada, a Sudeco disse que agiu conforme um "alinhamento de todo o Executivo". A Funasa alegou que é o município quem define o tamanho do caminhão. E a Codevasf negou irregularidades. O Palácio do Planalto não respondeu aos questionamentos da reportagem. Os políticos citados não ligaram de volta.