Ao final de quatro meses de discussões, duas comissões da Assembleia, formadas por deputados de diferentes partidos, propuseram saídas distintas para a superação da crise financeira estadual. Aprovados nos últimos dias, os relatórios produzidos divergem em um ponto crucial: o ingresso do Estado no regime de recuperação fiscal (RRF), considerado prioridade pelo governador Eduardo Leite.
Lançado pelo governo federal em 2017 e reformulado em 2020, o RRF é voltado a Estados em dificuldades financeiras. A iniciativa permite a suspensão e retomada gradativa do pagamento de dívidas e abre margem a financiamentos voltados ao ajuste fiscal. Em troca, quem adere ao programa se compromete a adotar um plano de recuperação por até 10 anos, com uma série de restrições e exigências.
Desde que surgiu, o tema é alvo de controvérsia. O ex-governador José Ivo Sartori tentou fechar acordo, mas não conseguiu. Leite deu continuidade ao intento e planeja nova investida junto à Secretaria do Tesouro Nacional em outubro — no último dia 14, ele obteve aval do Legislativo para encaminhar o pedido.
Com o avanço nas negociações, a Assembleia criou uma comissão especial — presidida pelo líder do governo na Casa, Frederico Antunes (PP) — para debater o assunto e acompanhar as tratativas. Aprovado no último dia 8, o parecer final concluiu que não há alternativa ao regime e recomendou urgência na adesão.
A preocupação é a possível queda da liminar (decisão judicial provisória) que autoriza o Palácio Piratini, desde 2017, a não pagar as parcelas devidas à União. Caso isso ocorra, o Estado terá de voltar a desembolsar cerca de R$ 350 milhões por mês e passará a ser cobrado pelo que ficou pendente.
— Nos últimos anos, semeamos modificações estruturais no Estado que tiveram continuidade e que estão dando resultado, mas as pessoas não têm noção de quanto ainda estamos engessados por essa dívida. Se a liminar cair amanhã, teremos um grande problema da noite para o dia. O Rio Grande do Sul não tem saída, hoje, senão aderir ao regime para garantir fôlego financeiro enquanto conclui os ajustes que ainda precisam ser feitos. O regime é uma peça fundamental para o equilíbrio fiscal — diz o relator da comissão, Carlos Búrigo (MDB), que integrou a gestão de Sartori.
Búrigo reconhece que as contrapartidas são duras (incluem, por exemplo, imposição de teto de gastos, proibição de reajustes ao funcionalismo e monitoramento externo das contas), mas argumenta que “são as condições possíveis, aprovadas pelo Congresso”. Na avaliação dele, trata-se de um “remédio amargo para evitar o pior”.
O entendimento não é unânime. Em paralelo a esse colegiado, outro grupo, sob o comando do deputado estadual Luiz Fernando Mainardi (PT), foi criado para debater saídas para a crise e discutir a necessidade de uma reforma tributária ampla e justa. Na última quinta-feira (16), o texto do relator, Elton Weber (PSB), foi chancelado pelos pares com quatro recomendações — nenhuma delas envolveu a adesão ao RRF.
— Nossa comissão se propôs a um debate mais amplo. A ideia de que só existe uma saída é uma visão autoritária. Como assim, só existe uma saída? Apenas um Estado aderiu ao regime até agora, o Rio de Janeiro, e ele não cumpre e nem teria como cumprir as regras, porque são absurdas. A adesão é exigida para que os Estados deixem de pagar as dívidas por um período, mas o regime impõe uma submissão completa, uma humilhação. Sem contar que, no nosso caso, o passivo já foi pago. O Rio Grande pode superar a crise, mas o caminho é outro. O que precisamos, entre outras coisas, é de um forte programa de desenvolvimento — defende Mainardi.
Para comparar
A seguir, veja o que cada comissão propõe e qual foram seus objetivos.
Comissão especial para a adesão do Estado ao regime de recuperação fiscal (RRF)
- Objetivo: acompanhar e debater as negociações entre Estado e União envolvendo o pedido de adesão ao RRF
- Presidente: deputado estadual Frederico Antunes (PP)
- Relator: deputado estadual Carlos Búrigo (MDB)
Principais conclusões
Aprovado por nove votos a dois no último dia 8, o relatório da comissão recomenda rápida adesão ao RRF e defende a continuidade das medidas de ajuste fiscal em curso. A adesão é classificada como vital para assegurar a sanidade das contas e evitar a queda da liminar que suspendeu o pagamento da dívida em 2017. À época, o então ministro Marco Aurélio Mello, do STF, aceitou pedido do governo gaúcho e antecipou, informalmente, os efeitos do regime, por entender que as negociações estavam avançadas.
Com isso, entre 2017 e 2021, segundo o relatório, o Estado deixou de desembolsar mais de R$ 12 bilhões. Caso a liminar caia, essa pendência virá à tona e ainda será necessário voltar a bancar R$ 3,5 bilhões por ano (duas folhas de pagamento do Executivo). A comissão argumenta que, com a adesão, o Estado terá prazo de 10 anos até voltar a pagar as parcelas cheias (a retomada é gradual, a partir do segundo ano) e que a quitação da soma pendente poderá ser dividida em 30 anos.
Conforme o relatório, “não aderir ao regime significa apostar numa liminar eterna ou numa nova renegociação de dívida ou, ainda, desfazer o maior equilíbrio de caixa que o Estado conquistou nos últimos tempos, caso volte a pagar as parcelas”. O texto conclui que não resta “outra alternativa senão o caminho da adesão ao RRF o mais rápido possível e com sinalizações concretas, para que (o Estado) possa, inclusive, até lá, garantir a sustentação da liminar diante das circunstâncias já colocadas”.
Comissão especial sobre a crise das finanças e reforma tributária
- Objetivo: debater saídas para a crise e o futuro do Estado e discutir a reforma tributária em nível nacional
- Presidente: deputado estadual Luiz Fernando Mainardi (PT)
- Relator: deputado estadual Elton Weber (PSB)
Principais conclusões
Aprovado por sete votos a um no último dia 16, o relatório final apresenta quatro recomendações: 1) foco em políticas públicas de incentivo ao desenvolvimento, capazes de fazer o Estado crescer e alavancar a arrecadação; 2) um movimento em defesa de uma reforma tributária nacional que garanta justiça fiscal e distribuição mais equânime dos recursos; 3) revisão da Lei Kandir, que isenta de impostos estaduais as commodities (produtos primários usados como matéria-prima, em geral de origem agropecuária e mineral), com perdas de R$ 4 bilhões ao ano para o RS, e 4) o questionamento da dívida com a União, considerado um ponto fundamental para a superação da crise.
Ao analisar o histórico do passivo, o relatório destaca que “já pagamos cerca de R$ 40 bilhões, quatro vezes mais que o contratado, e ainda devemos mais de R$ 70 bilhões”. Conforme o texto, “surgiram fundamentadas dúvidas sobre um conjunto de irregularidades na gestão do contrato”, o que leva a comissão a pedir que a Assembleia solicite esclarecimentos à União sobre “a legalidade da composição do saldo remanescente e eventual abatimento com o que já foi pago”.
O relatório conclui ser “prudente” aguardar as respostas, não recomenda a adesão do Estado ao RRF e destaca que os ex-governadores ouvidos nas audiências públicas “concordaram com a afirmação de que, nas condições atuais, ela (a dívida) se tornou impagável” e que “resolver a questão da dívida é a premissa para qualquer nova pactuação entre Estado e União”. “Portanto”, conclui o texto, “como falar em adesão ao RRF antes da auditoria da dívida?”.