Em mais um recado explícito ao presidente Jair Bolsonaro, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) precisaram de apenas 57 minutos nesta quarta-feira (14) para referendar a criação da CPI da Covid no Senado. A decisão confirmou a liminar concedida na semana passada pelo ministro Luís Roberto Barroso, obrigando o presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a instalar a comissão parlamentar de inquérito que irá investigar a gestão do governo federal no enfrentamento à pandemia.
O julgamento serviu como desagravo a Barroso, atacado publicamente por Bolsonaro após o despacho, e acentuou o embate entre os dois poderes. Nos últimas dias, pelo menos outras três decisões da Corte fustigaram o Planalto. Na segunda-feira, Rosa Weber havia anulado trechos de quatro decretos presidenciais que facilitavam a venda de armas à população.
Um dia depois, Marco Aurélio Mello deu 15 dias para Bolsonaro explicar o teor de uma frase na qual insinuava que poderia usar as Forças Armadas contra governadores que adotaram medidas rígidas de isolamento social. Ainda na terça-feira, Cármen Lúcia pediu que o plenário do STF julgue uma queixa-crime contra o presidente por suposto genocídio contra indígenas durante a pandemia.
Irritado com o que considerou uma ofensiva do Judiciário ao seu governo, Bolsonaro reagiu como de praxe: desabafando a apoiadores na entrada do Palácio da Alvorada. Numa conversa informal na manhã desta quarta-feira, reclamou das decisões e alertou para o surgimento de um “problema sério no Brasil”.
— Amigos do Supremo Tribunal Federal, daqui a pouco vamos ter uma crise enorme aqui. Vi que um ministro despachou um processo pra me julgar por genocídio. Olha, quem fechou tudo e está com a política na mão não sou eu. Agora, não quero brigar com ninguém, mas estamos na iminência de ter um problema sério no Brasil. É só parar, usar menos a caneta e mais o coração — afirmou.
Se o objetivo era frear o ímpeto dos ministros, não deu certo. Dois anos de enfrentamento constante com o presidente consolidaram na Corte um ambiente de defesa da instituição ante as declarações de Bolsonaro e de seus apoiadores. Na sessão desta quarta-feira, Barroso fez questão de incluir em seu voto um aviso sobre os riscos que escaladas autoritárias representam à democracia e às cortes constitucionais.
— Diversos países do mundo vivem recessão democrática. Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Geórgia, Venezuela, para citar alguns. Todos eles, sem exceção, assistiram a processo de ataque e esvaziamento de seus tribunais constitucionais. Quando a cidadania despertou, já era tarde — salientou Barroso.
A tensão constante na relação entre Bolsonaro e o Supremo não arrefeceu nem mesmo com a presença de um aliado entre os ministros. Empossado em novembro, Kassio Nunes Marques é visto com desconfiança pelos pares, sobretudo após os votos alinhados ao pensamento bolsonarista, como no julgamento da suspeição do ex-juiz Sergio Moro e ao permitir a abertura dos templos religiosos no pior momento da pandemia.
Nos bastidores, Nunes Marques é chamado somente de “novato” pelos demais ministros, apelido que Marco Aurélio Mello repete em tom debochado em entrevistas e pronunciamentos. Com o indicado sem prestígio na Corte e Dias Toffolli cada vez mais isolado, Bolsonaro tem em Gilmar Mendes o único interlocutor eficiente.
Gilmar, contudo, não se furta em criticar o governo ou quem considera seus emissários, seja Nunes Marques ou os mais afoitos candidatos a uma vaga no colegiado, como o procurador-geral da República, Augusto Aras, ou o advogado-geral da União, André Mendonça. Transitando nos salões políticos e jurídicos, Gilmar reveza farpas e afagos com destreza para, atuando como parte da estabilidade institucional, aumentar sua influência na escolha do sucessor de Marco Aurélio Mello, cuja aposentadoria está marcada para 5 de julho.
Se partiu de Gilmar o aval para a chegada de Nunes Marques ao STF, agora é dele o veto a Mendonça e Aras. O procurador está praticamente fora da disputa porque sua indicação criaria outro problema a Bolsonaro: quem deixar à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR).
Além não ser benquisto na Corte, Aras é valioso ao Planalto justamente pelo que deixa de fazer à frente do Ministério Público Federal. São rotina no STF as queixas sobre a demora ou omissão da PGR procurador em casos relevantes. O inquérito dos atos antidemocráticos, um dos expedientes do Supremo que mais preocupa Bolsonaro, aguarda há três meses por uma manifestação de Aras.
Já Mendonça perdeu espaço diante da dependência cada vez maior que Bolsonaro tem do centrão. Tido como favorito para a vaga enquanto estava no Ministério da Justiça, ele perdeu a dianteira para os ministros João Otávio de Noronha e Humberto Martins, ambos com assento no Superior Tribunal de Justiça. Considerados mais experientes e com melhor trânsito no STF, eles ostentam uma credencial que falta a Mendonça: a simpatia do presidente da Câmara, Arthur Lira, e do senador Ciro Nogueira, expoentes do PP e do bloco de sustentação ao governo no Congresso.
Ainda assim, mesmo a iminente presença de quatro interlocutores do presidente (Nunes Marques, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e o futuro ministro) envergando capa preta no plenário da Corte não garante perspectiva de paz na relação entre Bolsonaro e o corpo de ministros do Supremo. Mantido o atual ambiente político, a distância entre o Palácio do Planalto e o STF continuará sendo exponencialmente maior do que os 220 metros que separam a sede do Executivo e a do Judiciário na Praça dos Três Poderes.