Depois de atingir o auge nas eleições de 2018, a disseminação da desinformação nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens deve voltar com tudo na disputa que se avizinha. O alerta é de autoridades e de especialistas no tema, que preveem maior pulverização das milícias virtuais, uso massivo de áudios do WhatsApp para difundir mentiras e novos ataques ao processo eleitoral — tudo isso no contexto de uma pandemia politizada ao extremo, adubo perfeito para teorias da conspiração.
Cientes do problema, desembargadores, juízes e promotores se preparam para a guerrilha digital, que, por ser travada em bases municipais, tende a ser mais capilarizada e diversa do que se viu em 2018 e, por isso mesmo, mais difícil de combater. A perspectiva levou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a firmar parcerias inéditas com agências de checagem e gigantes da comunicação, como Google, Facebook, WhatsApp e Twitter.
No plano normativo, graças a mudanças ao longo de 2019, o pleito de novembro será o primeiro com a criminalização das fake news no Código Eleitoral e com reforço nas regras de controle das campanhas pela internet. Candidatos e siglas passarão a ser obrigados, por exemplo, a checar a veracidade de conteúdos antes de replicá-los.
Embora os avanços sejam celebrados por quem entende do assunto, há consenso de que será preciso mais para estancar a enxurrada de inverdades prestes a explodir.
— Desde 2016, eu vinha conversando com os presidentes do TSE na tentativa de convencê-los da importância do assunto. O ministro Luís Roberto Barroso (à frente da Corte desde maio) compreendeu a gravidade da situação e encampou a briga. Isso é muito importante, mas ainda há um longo caminho a percorrer — afirma Cristina Tardáguila, diretora-adjunta da International Fact-Checking Network (IFCN) e fundadora da agência Lupa.
Os checadores de informações vêm conversando com o TSE sobre a possibilidade de reproduzir o projeto Certeza, adotado no México, em 2018. A iniciativa incluiu ampla ofensiva para explicar os fundamentos das eleições, treinamento de servidores em técnicas de checagem para esmagar boatos em tempo real e apoio a uma coalizão de cerca de 70 veículos de comunicação voltada à verificação de dados. Como resultado, a proposta ajudou a reduzir danos e se tornou referência.
Ao se aproximar desses mesmos atores no Brasil, o TSE de Barroso parece seguir na direção sugerida. A questão é que o tempo urge. Enquanto a discussão se desenrola, os tribunais regionais eleitorais (TREs) trabalham para garantir resposta à altura do oponente invisível.
No Rio Grande do Sul, a Corte criou uma comissão de enfrentamento à desinformação, com base em três pilares: conscientização, fiscalização e responsabilização.
— Vamos controlar de perto as notícias falsas e rebatê-las com agilidade. Também pretendemos mostrar ao eleitor que espalhar mentiras e ofensas pode, sim, levar à responsabilização civil ou criminal do infrator. A participação ardilosa daquele que divulga falsidades não será gratuita — adverte o desembargador Jorge Luís Dall’Agnol, presidente da comissão.
Coordenador do gabinete eleitoral do Ministério Público no Estado, Rodrigo Zilio partilha da preocupação de Dall’Agnol e concorda que as autoridades precisam agir com maior contundência depois do que se viu em 2018. Ainda assim, Zilio prevê dificuldades.
— Deve ficar claro para as pessoas que a internet é um ambiente democrático, mas de responsabilidade, isto é, que não se trata de uma bolha de impunidade. Isso não significa que a mera punição ou persecução judiciária serão o bastante. Para reduzir as fake news, tem de haver uma conjugação de esforços de toda a sociedade — reforça o promotor.
O problema, argumenta Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), é que a eleição de 2018 alçou o WhatsApp à categoria de “terra de ninguém”. A Lei das Fake News, em discussão na Câmara, prevê a possibilidade de rastreamento de criminosos, mas é alvo de controvérsia (inclusive entre especialistas) e não deve ser sancionada a tempo da votação.
Não é fácil convencer as pessoas de que devem desconfiar daquilo que confirma o que o que elas pensam
PABLO ORTELLADO
Professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP
Ou seja, mesmo que as autoridades, com a ajuda da imprensa, dos checadores e das próprias plataformas, exerçam papel de protagonismo, a batalha não será vencida sem a adesão de quem mais importa: a população. O desafio é quebrar as resistências.
— A desinformação explora a vulnerabilidade psicológica. Como todos estão muito apaixonados por suas convicções, justamente por causa da polarização política, ficam pouco críticos às informações que reforçam suas crenças. Não é fácil convencer as pessoas de que devem desconfiar daquilo que confirma o que o que elas pensam — observa Ortellado.
Novidades na legislação
Nas eleições de novembro, a campanha virtual terá novas regras. Confira as principais mudanças
1) Criminalização da desinformação
- Desde 2019, o crime de fake news está previsto no Código Eleitoral, por iniciativa do Congresso
- A legislação passou a punir, com pena de dois a oito anos de prisão e multa, a pessoa que, "comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído”
- A medida é considerada importante por especialistas, mas ainda há dúvidas se terá, de fato, aplicação, já que o Código Eleitoral já prevê o crime de calúnia, com pena de até dois anos de reclusão
2) Mais controle sobre internet, redes e aplicativos
Em resolução publicada em dezembro de 2019, a Justiça Eleitoral reforçou as regras de uso da internet na campanha eleitoral. Veja o que os principais pontos:
Disparos em massa
Está proibida a contratação de disparo em massa de mensagens via aplicativos como WhatsApp e Telegram. Segundo o TSE, disparo em massa significa “envio automatizado ou manual de um mesmo conteúdo para um grande volume de usuários, simultaneamente ou com intervalos de tempo, por meio de qualquer serviço de mensagem ou provedor de aplicação na internet”.
Páginas e perfis
A partir de agora, todas as páginas e contas oficiais dos candidatos na internet e nas redes sociais devem ser informadas à Justiça Eleitoral no registro da candidatura.
Propaganda
Enviar propaganda eleitoral por meio de aplicativos é permitida, mas vale apenas para contatos cadastrados de forma gratuita pelo candidato ou partido (ou seja, não é permitido comprar bancos de dados). O postulante deve ser o responsável pelo envio e quem recebe tem o direito de sair da lista, se assim desejar.
Impulsionamento
O impulsionamento de conteúdo é permitido, mas precisa ser identificado e só pode ser feito por meio de contas oficiais do candidato, do partido ou da coligação. Passou a ser proibida a contratação de empresa ou agência terceirizada para fazer isso. Segundo o TSE, o impulsionamento é o mecanismo ou serviço que potencializa o alcance de determinada informação para atingir usuários que, normalmente, não teriam acesso ao conteúdo.
Checagem
O uso de qualquer conteúdo (inclusive de terceiros) na propaganda eleitoral, deve pressupor, segundo o TSE, “que o candidato, o partido ou a coligação tenha verificado a presença de elementos que permitam concluir, com razoável segurança, pela fidedignidade da informação”. Isso significa que eles são obrigados a checar a informação antes de replicar. A medida prevê inclusive direito de resposta à vítima
O que mudou nas redes sociais
Sob forte pressão desde as eleições de 2018, as principais plataformas digitais vêm adotando ações para coibir a difusão de mentiras, ainda que especialistas considerem insuficientes. Em 2019, Google, Facebook (que controla o WhatsApp e o Instagram) e Twitter aderiram ao programa do TSE contra as fake news. Na ocasião, seus representantes se comprometeram a atuar com rigor para combater o problema.
Confira três mudanças recentes
- O WhatsApp passou a limitar o encaminhamento de mensagens para dificultar os envios em massa
- Facebook e Instagram tiraram contas falsas do ar em países como Brasil (parte delas ligadas a aliados do presidente Jair Bolsonaro), Canadá e Estados Unidos
- O Twitter passou a sinalizar (e até a apagar) postagens suspeitas, inclusive em perfis de autoridades, entre elas o presidente dos EUA e candidato à reeleição Donald Trump