Quase 80 dias após a entrada em vigor do sistema de distanciamento controlado, o governo do Estado tenta manter uma coesão nas políticas de enfrentamento à pandemia. Para frear os recursos a cada rodada de bandeiras e evitar a proliferação de medidas independentes adotadas nas prefeituras, a ideia é permitir que os municípios decidam entre si, dentro de cada região, se obedecem às regras mais restritivas de isolamento social.
Sob pressão do calendário eleitoral e de entidades empresariais, muitos gestores estão vivendo um dilema. Enquanto muitos tentam evitar restrições mais severas, alguns têm recorrido ao lockdown, assustados com os níveis locais de contaminação.
Ciente da disparidade de iniciativas e da recusa de alguns em seguir os parâmetros mais severos de quarentena, o governo do Estado pretende editar uma atualização no decreto que rege o modelo de bandeiras. A ideia é permitir conceder mais liberdade de ação aos municípios, sem comprometer os indicadores técnicos que norteiam o sistema.
Pela proposta entregue nesta segunda-feira (27) à Famurs, fica extinta a possibilidade de recurso ao gabinete de crise que toda segunda-feira muda o mapa de risco do Estado. Se houver unanimidade entre os prefeitos de cada região, eles poderão adotar os parâmetros da bandeira anterior mais flexível. Se não for possível obter consenso, fica estabelecida a bandeira determinada pelo governo.
A proposta é um avanço em relação a sugestão da semana passada, quando o governador Eduardo Leite não exigia consenso entre os prefeitos, deixando a decisão de obediência a cargo das associações regionais dos municípios. A proposta foi logo rechaçada pelas entidades.
Nos bastidores, prefeitos relatam o temor de responder sozinhos caso haja um descontrole da contaminação, com súbito aumento das mortes. Todavia, a cada rodada dos sistemas de bandeiras, muitos recorrem ao gabinete de crise para evitar o fechamento do comércio. Há duas semanas, no maior volume de irresignação, 63 municípios ingressaram com recursos.
O presidente da Famurs, Maneco Hassen, defende a manutenção do sistema de bandeiras, mas reclamava uma melhor calibragem nas regras dos recursos. Agora ele pretende ouvir os colegas e apresentar uma contraproposta ao Piratini.
— Essa nova proposta é melhor. Mas temos divisões dentro de cada associação e entre as associações. Estou consultando as 27 entidades e vamos marcar uma nova reunião com o governo para chegarmos a um acordo — diz Hassen.
Os desacertos anteriores levaram a uma onda de medidas individuais, à revelia das orientações do governo do Estado. Muitos gestores estão adquirindo lotes de medicamentos cuja eficácia no tratamento da covid-19 não tem comprovação científica. Em Parobé, Campo Bom, Cachoeirinha e Gravataí, por exemplo, as prefeituras distribuem cloroquina nos postos de saúde, mediante prescrição médica. Igrejinha, no Vale do Paranhana, foi além. Por determinação do prefeito Joel Wilhelm, o laboratório municipal de manipulação passou a fabricar hidroxicloroquina e ivermectina.
— A gestão não orienta nem recomenda o uso de qualquer medicamento. Apenas proporciona alternativa — diz Wilhelm.
O avanço da pandemia também provoca reações aparentemente contraditórias. Em Garibaldi, na Serra, o prefeito Antonio Cettolin chegou a participar de um protesto em junho, em apoio a comerciantes revoltados com a bandeira vermelha. Foi à Justiça e obteve liminar mantendo o município sob bandeira laranja. Na semana passada, contudo, ele não só acatou a bandeira vermelha como fechou quase todos os espaços públicos do município e estabeleceu multas de até R$ 2,3 mil aos desobedientes.
— Isso é coerência. Reclamei quando a situação estava sob controle. Agora que as UTIs estão lotadas, fui mais rigoroso do que o Estado. Sou a favor das bandeiras, mas acho que os prefeitos precisam de mais autonomia para equalizar pequenos problemas locais — explicou.
Outros gestores foram ainda mais severos. Em Rio Grande, a prefeitura adotou protocolos de bandeira preta mesmo estando sob etiqueta vermelha. Em Alegrete e Pedro Osório, o final de semana foi de paralisia total, na situação mais próxima de um lockdown que o Estado registrou desde o início da quarentena.
Apesar das variadas medidas de contenção, poucos municípios recorreram à testagem maciça dos moradores. Um deles foi Venâncio Aires, onde a prefeitura deflagrou nesta segunda-feira (27) a aplicação de 15 mil testes. O objetivo do prefeito Giovani Wickert é detectar e isolar eventuais infectados para permitir a manutenção da atividade econômica de forma segura. Wickert também adotou na cidade um aplicativo que monitora a circulação das pessoas e garante um rastreamento caso haja confirmação do contágio. Com 71 mil habitantes e atualmente apenas 19 casos de covid, o prefeito diz que vai testar toda a população, caso necessário.
— Tem prefeitos que não querem assumir suas responsabilidades e outros que querem. Daí fica esse jogo de empurra improdutivo. Eu estou fazendo minha parte, testando os moradores, monitorando todo mundo. Não acredito em autonomia total, mas ninguém conhece sua comunidade melhor do que os prefeitos. Defendo um sistema híbrido, com o Estado regulando as bandeiras, mas com maior participação dos municípios e uma calibragem mais justa dos indicadores — comenta Wickert.
"Não há política eficiente de prevenção", diz Maneco Hassen, presidente da Famurs
Há 20 dias à frente da Federação das Associações dos Municípios do Estado (Famurs), o prefeito de Taquari, Maneco Hassen, é o principal interlocutor dos prefeitos junto ao Palácio Piratini. Para Hassen, a miscelânea de iniciativas dos gestores no combate reflete a falta de liderança e coordenação do Estado na política de prevenção. Ele sugere rigor maior na análise dos recursos após a classificação semanal das bandeiras e regras mais brandas de isolamento para municípios com menos mortes e internações. Confira:
Como senhor vê essa variedade de medidas tão diferentes sendo adotadas pelos prefeitos, uns mais flexíveis e outros mais rigorosos?
Há um esforço de todos os prefeitos para proteger suas comunidades, mas essa individualização das condutas reflete a falta de liderança. Aqui no Estado a discussão se restringe às bandeiras. Não há uma política eficiente de prevenção. Estamos há mais de 100 dias de pandemia e recém o Estado lançou um programa para aumentar os testes, aliás absolutamente insuficiente, só para algumas cidades. Também não há nenhum programa econômico para amenizar os efeitos da crise, por exemplo com o uso do Banrisul. Tampouco há orientação para a Brigada Militar e os órgãos de segurança atuar. Todo final de semana a imprensa mostra os espaços públicos lotados. Não dá para atirar tudo nos colos dos prefeitos. Não temos condições técnicas nem dinheiro para dar conta de todas as responsabilidades.
No início da quarentena, o governador quis deixar a gestão do isolamento com os prefeitos, mas eles recusaram. Agora querem mais autonomia. O que mudou?
Lá no início a gente já viu o reflexo do que pode haver com a diferença de posturas entre cada prefeito, de termos municípios vizinhos com normas absolutamente diferentes. Não dá resultado para nenhum dos dois. As pessoas circulam e o vírus também. Naquele momento, dezenas de entidades pediram a liderança do governo do Estado no processo. Agora tem dois fatos. Ainda que ninguém confesse, a eleição interfere, sim, nas decisões. Por isso, a Famurs era contra ter eleições este ano. E a pressão das entidades empresariais, que é verdadeira e salutar. O problema não é a pressão, estão no direito deles, mas nos últimos dias tem sido muito forte.
Na sua opinião, o governo está errando?
Há uma sinalização equivocada do governo. É uma opinião pessoal minha, não da entidade. Primeiro, a interpretação equivocada dos recursos. Na verdade, deveriam ser para tornar o modelo mais justo e estão se tornando um meio de contraposição do modelo. Passa uma imagem para a população de que o modelo estaria errado. Segundo, a vacilação do Estado liberando o campeonato gaúcho. Isso vai criando um clima de que cada um pode fazer o que quer.
Como evitar esse ambiente de liberou geral e o que o sr. espera do decreto?
Queremos esgotar toda a capacidade de diálogo. É preciso transparência, debater o assunto e entender que estamos no mesmo barco para, ao final, tirar dali o que nos une, o consenso. Temos de trabalhar para termos uma posição unitária, não de disputa. Porque a nossa postura se reflete no comportamento da população. Se ela vê os governos discordando, não sabe em quem confiar e qual medida cumprir.
O que o senhor achou da proposta do governo de liberar as regiões de cumprir regras mais severas se houver unanimidade entre os prefeitos?
É um avanço. Amanhã (hoje) temos uma reunião com o Ministério Público e vamos abordar a questão. Mas é muito difícil obter unanimidade dentro das regiões. Vamos coletar sugestões e voltar a dialogar. Algumas associações têm boas propostas, como fazer ajustes nos indicadores. Hoje a regra 0-0 prevê que um município pode sair da bandeira vermelha se tiver zero morte e zero internação em 14 dias. Poderia ser um óbito e poucas internações. Ficaria mais justo. Mas o problema nem está nesse. Está nos maiores municípios, muitos dos quais teriam que estar em bandeira vermelha.
Política de enfrentamento à covid precisa ser do Estado, apontam especialistas
Para ser eficaz, o combate a uma pandemia precisa ser efetivado com um planejamento central e ações periféricas. Esse o entendimento de especialistas consultados por GaúchaZH diante do cenário de múltiplas iniciativas municipais no enfrentamento do coronavírus no Rio Grande do Sul. Para o reitor da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal, as medidas adotadas unilateralmente pelos prefeitos não são capazes de diminuir o contágio.
Epidemiologista e condutor de pesquisas sobre o grau de contaminação dos brasileiros, Hallal defende a participação maior dos gestores municipais na fiscalização das medidas de prevenção, e menor na concepção das políticas públicas.
— O prefeito está muito perto da população, fica muito suscetível a pressões. Então ser ele quem vai mandar o amigo fechar a loja. Isso é função do governo do Estado. Mas ele tem que ajudar a fiscalizar, para que as normas tenham efeito — sustenta.
Hallal também cita a intensa circulação de pessoas dentro de uma mesma região como fator de risco para o êxito de estratégias diferentes de enfrentamento a uma pandemia.
— O prefeito de Rio Grande adotou bandeira preta quando o sistema classificava a cidade como bandeira vermelha, mas daí a prefeita de Pelotas, cidade vizinha, recorreu ao governo para que sua bandeira vermelha ficasse laranja. E as pessoas indo de vindo de uma cidade para outra. No fim, nada dá certo — comenta.
A opinião é compartilhada pelo médico Erno Harzheim. Professor de medicina da família e ex-secretário de Atenção Primária à Saúde na gestão de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, Harzheim afirma que as decisões não podem ser autônomas diante de um sistema interdependente.
— O sistema de saúde tem três níveis de gestão e o mais periférico é o municipal. É também o mais heterogêneo. Poucas cidades têm atendimento de complexidade, com UTI. Então um município que não tem UTI não pode ter autonomia total e passar a consumir a UTI do vizinho. É preciso o papel coordenador do Estado.
Para Harzheim, a maior dificuldade na pandemia é também a maior dificuldade da medicina: a adesão ao tratamento. Se não houver engajamento, não haverá como deter o avanço do vírus.
— Na medicina, muitas vezes não se tem efetividade porque o paciente não adere. A evolução é a decisão conjunta entre paciente e médico, o que gera maior adesão ao tratamento. Eu entendo a posição do governador dessa forma. Ele quer adesão das pessoas, dos municípios. No momento que ficou com cara de imposição, veio a reação. Há uma tensão, todas as populações precisam de recursos. O papel do estado é moderar essa tensão.