Com votação prevista para a próxima semana, no Senado, o projeto que combate a desinformação na internet é alvo de fogo cruzado nas redes e fora delas. Longe do consenso, a chamada Lei das Fake News está na mira de aliados do governo Jair Bolsonaro, que temem censura, e também é criticada por entidades e especialistas no tema, que pedem mais tempo para o debate. A apreciação estava prevista para esta terça-feira (2), mas, diante das divergências, acabou sendo adiada.
Assinada pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e pelos deputados Tábata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), a proposta institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e define uma série de regras. A intenção dos autores é impedir que contas enganosas — criadas para disseminar inverdades ou assumir a identidade de terceiros sem consentimento e com fins escusos — sigam vicejando e provocando estragos.
Controverso pela dificuldade de definir de forma precisa a tênue linha que separa a tentativa de regulação do risco de cerceamento à liberdade de expressão, o tema ganhou força nas últimas duas semanas, devido ao avanço do inquérito que apura a divulgação de informações inautênticas e de ameaças contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). A operação da Polícia Federal contra bolsonaristas, realizada no fim de maio, também contribuiu para alçar o assunto mais uma vez aos holofotes, à revelia da família presidencial.
No Twitter, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente, tem dito que a proposta "pode acabar com a liberdade na internet" e que, se fosse boa, os usuários da rede teriam aderido de forma voluntária.
As ressalvas não se limitam a apoiadores do governo. Em nota divulgada na última sexta-feira (29), o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) apontou as "complexidades conceituais e técnicas envolvidas" e pediu mais tempo para as discussões. O órgão enviou ofício aos presidentes da Câmara e do Senado e aos líderes dos partidos "recomendando que se ampliem e aprofundem os debates, com a participação efetiva do CGI.br, assim como de todos os agentes interessados, antes que matéria de tamanha relevância para a garantia das instituições democráticas do país seja votada".
Para quebrar resistências, os autores do texto propuseram, na última segunda-feira (1º), a supressão de artigos e a apresentação de uma emenda substitutiva. O recuo envolve pontos como a checagem de dados nas redes sociais e os limites impostos a aplicativos de troca de mensagem, entre eles o WhatsApp.
Nosso foco é retirar de circulação ferramentas que são utilizadas criminosamente.
ALESSANDRO VIEIRA
Senador
— Vamos concentrar naqueles pontos que reúnem grande consenso técnico e político. Nosso foco é retirar de circulação ferramentas que são utilizadas criminosamente, especialmente as contas falsas e as redes ilegais de distribuição — afirmou Vieira, em entrevista coletiva.
Na proposição original, o trecho relativo à verificação de postagens previa a avaliação de auditores independentes definidos pela própria rede social ou aplicativo de comunicação. Caso o conteúdo analisado fosse considerado improcedente, receberia um selo de desinformação. Isso caiu.
No lugar, Vieira e os colegas sugeriram que publicações sob suspeita sejam examinadas por um grupo coordenado pelo CGI.br e que os autores sejam notificados. A ideia é que eles tenham prazo de até três meses para contestar o resultado. Além disso, o conteúdo publicado só poderá ser removido por decisão judicial.
Não há nenhum dado que comprove que leis levam à diminuição de notícias falsas.
CRISTINA TARDÁGUILA
Do International Fact-Checking Network
Quanto ao WhatsApp e a outros aplicativos do tipo, na versão anterior do projeto as empresas seriam obrigadas a limitar o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem a no máximo cinco usuários ou grupos, sendo que cada grupo poderia ter até 256 membros. No substitutivo, a limitação é apenas recomendada.
As alterações não foram suficientes para aplacar as críticas entre especialistas. Segundo Cristina Tardáguila, diretora-adjunta da International Fact-Checking Network e fundadora da Agência Lupa, "não é fácil definir desinformação de forma clara e justa". Esse é um dos motivos pelos quais o projeto, na avaliação dela, é "temerário" e "trará efeitos nocivos ao Brasil".
— Não há nenhum dado que comprove que leis levam à diminuição de notícias falsas. A Indonésia prende mães que compartilham fakes no WhatsApp. Na Tailândia, a autocensura é vigente entre jornalistas. Deveria causar estranhamento aos brasileiros o fato de nossos políticos estarem tentando aprovar um texto absurdo, de forma açodada, em plena pandemia — diz Cristina.
Diretor do InternetLab, centro de pesquisa sobre Direito e Tecnologia, Francisco Brito Cruz também tem ressalvas e considera exíguo o prazo de debate, embora reconheça o esforço do senador Vieira na tentativa de abrir o diálogo. Cruz tem ainda mais receio do texto do relator do projeto, senador Ângelo Coronel (PSD-BA). Presidente da CPI das Fake News, Coronel já adiantou que irá apresentar proposta complementar, de sua autoria.
— O projeto que estava sendo discutido já vinha em um ritmo bastante apressado. Não era perfeito e não estava maduro, mas, bem ou mal, o senador Alessandro Vieira disponibilizou a proposta e abriu conversas nas redes sociais. O que preocupa é que ele perdeu o controle. Não podemos tratar todos os usuários da internet como potenciais infratores. Esperamos que o bom senso prevaleça e que haja mais tempo para que possamos debater ponto a ponto — reforça o doutor em Direito.
A saída para coibir a difusão de mentiras na rede, na opinião de Cristina, deveria tomar outra direção.
— Em levantamento recente, detectamos que apenas dois projetos de lei que tramitam no Congresso sugerem a educação como forma de resolver a desinformação. Por que o Brasil não segue os passos dados por Finlândia e Reino Unido, que adotaram currículos de alfabetização midiática e fact-checking nas escolas? — questiona a jornalista.
Caso a Lei das Fake News receba o aval do Senado, o texto ainda terá de passar pela Câmara. Como os autores já preveem novas modificações por lá, a tendência é de que a palavra final seja dos senadores. Só depois disso, se a proposta for aprovada, irá à sanção presidencial.
Em entrevista ao Gaúcha Atualidade, Rigoni detalhou que a atenção que o projeto dá aos robôs tem relação com a velocidade com a qual eles auxiliam na se disseminação das notícias falsas.
— A forma mais eficiente de combater as fake news é justamente fornecer mais informação para as pessoas. Trabalhamos com três pilares: transparência, combate a robôs e medidas corretivas, onde pedimos às plataformas que já atuam nesse combate, que sejam transparentes em relação às publicações — disse.
Tábata ressalta que o projeto "não censura, não quebra a privacidade e nem retira conteúdo do ar". "A nossa luta é por mais transparência e informação nas redes sociais", escreveu a deputada no Twitter.
O projeto
Chamado de Lei das Fake News, o projeto de lei nº 2.630, de 2020, institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Um dos objetivos é "o fortalecimento do processo democrático por meio do combate ao comportamento inautêntico e às redes de distribuição artificial de conteúdo". Para aplacar críticas, os autores sugeriram alterações no texto original, por meio de uma emenda substitutiva. Confira os principais pontos, incluindo as mudanças.
Principais pontos
- O projeto diz que as plataformas devem proibir o funcionamento de contas inautênticas e o uso de robôs em contas automatizadas não identificadas. Devem comunicar todos os conteúdos impulsionados e de publicidade com distribuição paga e também identificar os conteúdos patrocinados.
- As medidas valem para redes sociais e aplicativos com mais de 2 milhões de usuários registrados.
- As proibições "não implicarão restrição ao livre desenvolvimento da personalidade individual, à manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação cultural".
- As plataformas deverão produzir relatórios trimestrais de transparência, disponibilizados em seus sites, em português, para informar procedimentos, decisões e medidas empregadas para o cumprimento da lei.
- Também deverão solicitar a identificação (inclusive por meio da apresentação de documento de identidade válido) e a localização dos usuários antes da criação de uma conta e limitar o número de contas por pessoa.
- Sempre que uma postagem suspeita de irregularidade for analisada, o usuário deverá ser notificado e informado sobre os motivos da verificação. Ele terá prazo de até três meses para contestar. O conteúdo não poderá ser removido, exceto por decisão judicial.
- O texto recomenda a aplicativos como o WhatsApp que limitem o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem, assim como o número de membros de cada grupo.
Sanções
- O uso de contas automatizadas não identificadas ou de redes de distribuição artificial não identificadas, assim como a utilização de contas falsas, serão incluídos na Lei de Lavagem de Dinheiro, com penas de três a oito anos de reclusão e multa, e na Lei de Organizações Criminosas, com penas de três a 10 anos de reclusão e multa.
- Se a conduta descrita acima for cometida por funcionário público no exercício de sua função, a pena será ampliada em um sexto.
- Também há a possibilidade de sanções como advertência, multa e suspensão de atividades. As sanções devem levar em conta a gravidade do crime, a eventual reincidência e a capacidade econômica para o pagamento de indenização.