Sergio Moro está diante de um dilema jurídico. Se realmente apresentar provas duras contra o presidente Jair Bolsonaro, como tem prometido desde que deixou o governo, o ex-ministro da Justiça corre o risco de autoincriminação em inquérito aberto pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Essa situação ocorre porque um dos delitos sob investigação diz respeito à suposta omissão do ex-juiz da Lava Jato em relação a possíveis ilegalidades praticadas pelo presidente.
Quando pediu demissão do cargo, Moro falou em tentativas de Bolsonaro de interferir na Polícia Federal. Diante dessas acusações, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu a abertura de um inquérito para apurar o caso, o que foi aceito pelo Supremo.
Moro deve prestar depoimento à PF neste sábado (2), em Curitiba - ele foi marcado após o ministro do STF Celso de Mello dar o prazo de cinco dias para a corporação ouvir o ex-ministro.
Pela manhã, Bolsonaro chamou Moro de "Judas" e afirmou a apoiadores na porta do Palácio do Alvorada, que criticavam o STF, que "ninguém dará um golpe em seu governo".
O dilema atual de Moro na investigação é levantado por especialistas ouvidos pela Folha. Segundo parte deles, porém, há aspectos técnicos penais favoráveis ao ex-ministro no inquérito.
No pedido de abertura de inquérito, o procurador-geral da República afirmou que, em tese, oito crimes podem ter sido cometidos. São eles: falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, obstrução de Justiça, corrupção passiva privilegiada, prevaricação, denunciação caluniosa e crimes contra a honra.
Segundo interlocutores da PGR, os três últimos crimes podem ter sido cometidos, em tese, por Moro. Já o chefe do Executivo pode ser enquadrado nos outros cinco delitos e também no de prevaricação.
O delito de prevaricação, por exemplo, ocorre quando um funcionário público deixa de praticar um ato que está nas atribuições de seu cargo para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
A pena é de detenção, que pode variar de três meses a um ano, e de multa. Esse tipo de delito é considerado de menor potencial ofensivo e não leva os condenados à prisão. Em regra, a pena é convertida em multa ou prestação de serviços à comunidade.
Já o crime de denunciação caluniosa, outro apontado nos bastidores em relação a Moro, é o que tem a pena mais alta, que é de dois a oitos anos de reclusão, e multa. Esse delito ocorre quando uma pessoa pratica um ato que leva à abertura de uma investigação oficial ou a um processo judicial, contra alguém que ela sabe ser inocente.
A apuração no STF também trata de crime contra a honra, e o mais grave nessa categoria é o de calúnia. O delito ocorre quando alguém afirma falsamente que outra cometeu um crime. A pena é de detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
O caso no STF tem como relator o ministro Celso de Mello. Tecnicamente, tanto o ex-juiz quanto Bolsonaro são considerados investigados. O requerimento de Aras foi apresentado ao tribunal em 24 de abril, horas depois de Moro ter feito um pronunciamento para anunciar seu pedido de demissão e apresentar acusações graves contra Bolsonaro.
Na oportunidade, o ex-juiz afirmou que Bolsonaro pretendia tirar Maurício Valeixo da diretoria-geral da Polícia Federal para aumentar suas relações com a corporação e ter acesso a informações sobre investigações em andamento.
De acordo com o ex-ministro, "o presidente queria alguém que ele pudesse ligar, colher informações, relatório de inteligência. Seja o diretor, seja o superintendente".
Em entrevista à revista Veja na qual reafirmou que vai apresentar provas de suas alegações contra Bolsonaro ao STF, Moro afirmou ainda que o pedido de abertura das inquérito de Aras foi "intimidatório" por incluir a apuração sobre denunciação caluniosa e crime contra a honra.
– Entendi que a requisição de abertura desse inquérito que me aponta como possível responsável por calúnia e denunciação caluniosa foi intimidatória. Dito isso, quero afirmar que estou à disposição das autoridades – disse.
Aras respondeu por meio de nota. Ele refutou a afirmação de Moro e disse que "não aceita ser pautado ou manipulado ou intimidado por pessoas ou organizações de nenhuma espécie".
Mas é em referência à prevaricação que Moro corre o risco de autoincriminação. Suas eventuais provas terão influência direta na apuração do delito.
Em relação a esse tema, o advogado criminalista e presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB, Leandro Sarcedo, diz que Moro pode estar em um dilema porque "a regra é a de que qualquer pessoa do povo pode comunicar um crime de que tenha tomado ciência, já as autoridades devem comunicar".
– Esse tema das provas antigas é um tanto embaraçoso porque ele estava na posição de garantidor da lei e da ordem, como ministro da Justiça, e de repente deixa passar coisas que deveriam ter algum tipo de investigação – afirma Sarcedo.
Já Marco Aurélio Florêncio, professor de direito penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tem um entendimento diferente sobre a situação jurídica de Moro no governo. Para ele, o ministro da Justiça tem como função auxiliar o presidente, que é quem realmente pratica os atos administrativos.
Para exemplificar, Florêncio comparou o caso com o de uma empresa que possui um departamento de prevenção de ilícitos (compliance, na língua inglesa).
– Se o diretor desse setor alerta o presidente da companhia sobre provável ilegalidade de um ato, mas mesmo assim o chefe pratica o ato, o subordinado não deverá ser responsabilizado, pois orientou quem tinha o poder de decisão a agir conforme a lei – diz o professor do Mackenzie. – O ministro é isso, é apenas um funcionário, o tomador de decisão é o presidente da República – completa.
Há divergência entre os especialistas também quanto à configuração jurídica da possível conduta de Moro. Segundo o advogado e professor de direito penal da USP Pierpaolo Bottini, o eventual surgimento de evidências de que Moro teve acesso a provas sobre crimes cometidos por Bolsonaro poderia levar ao enquadramento do caso no artigo 66 da Lei de Contravenções Penais.
Esse dispositivo legal estabelece que comete delito o funcionário público que deixar de comunicar à autoridade competente crime de que teve conhecimento no exercício de função pública. De acordo com Bottini, para se chegar à prevaricação, seria necessário comprovar cabalmente que Moro teria sido omisso para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
Outro aspecto da discussão jurídica apontado pelos especialistas diz respeito ao período de tempo e intensidade das supostas pressões de Bolsonaro.
O advogado criminalista e conselheiro da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo) Rodrigo Nabuco diz que, se Moro teve uma conversa com o presidente meses atrás e não agiu desde então, pode ter prevaricado.
– Caso seja uma situação mais antiga, ele [Moro] sabe que o presidente está cometendo um crime, ele como ministro da Justiça não pode permitir. Ele tinha que tomar as providências: oficiar ao procurador-geral da República e pedir demissão – completa Nabuco.
O advogado criminalista Fernando José da Costa diz que é preciso ter um contexto mais grave do que se conhece hoje para se falar em crime de prevaricação de Moro.
– O ex-ministro não se autoincrimina mesmo com provas passadas, porque o deixar de agir não é num primeiro ato, mas numa somatória de atos. Seria preciso ter um ano inteiro de pressão descarada – afirma.
Moro informou por meio de sua assessoria que não vai se manifestar sobre os temas do inquérito.
Os crimes que podem ser atribuídos a Moro no STF
PREVARICAÇÃO
O delito está na parte do Código Penal dedicada aos crimes cometidos por funcionário públicos
O artigo 319 do texto legal estabelece que comete o crime aquele que retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal
A pena é de detenção, de três meses a um ano, e multa
DENÚNCIA CALUNIOSA
O crime está definido pelo Código Penal como um delito contra a administração da Justiça
Segundo o artigo 339 do código, pratica a ilegalidade quem dá causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém que sabe ser inocente
A punição é de reclusão, de dois a oito anos, e multa
CRIME CONTRA A HONRA
O mais grave dos crimes contra a honra previsto no Código Penal é o de calúnia
De acordo com o artigo 138 da lei, o delito ocorre quando alguém afirma falsamente que outra cometeu um crime
A pena é de detenção, de seis meses a dois anos, e multa