Bufando, o presidente Jair Bolsonaro deu as costas aos oito auxiliares reunidos no Palácio da Alvorada e saiu para a varanda, tentando espairecer enquanto fitava o horizonte do Planalto Central. Na sala, o grupo se dividiu.
Uns saíram para afagar Bolsonaro. Outros tentavam serenar os ânimos do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Segundos antes, o confronto entre chefe e subordinado teve o presidente ameaçando Mandetta de demissão e o ministro perguntando se o mandatário se responsabilizaria por milhares de mortos. Acabou ali, na tarde de 28 de março, qualquer resquício de confiança entre as principais autoridades da República envolvidas no combate ao coronavírus. Desde então, exonerar Mandetta teria se tornado obsessão de Bolsonaro.
Ao ministro, resistir virou questão de honra.
No entorno do presidente, o rompimento serviu de aval para atacar Mandetta. A operação envolveu o próprio Bolsonaro e seus filhos, passou por dentro do “gabinete do ódio” – núcleo ideológico radicado no Palácio do Planalto – e foi disseminada nas redes sociais por influenciadores bolsonaristas.
Aos poucos, passaram a circular notícias falsas envolvendo Mandetta, investigações da época em que foi secretário da Saúde em Campo Grande (MS) e perfis falsos criados em seu nome em redes sociais com críticas a Bolsonaro. Enquanto a matilha digital agia, começava o cerco político. Ele foi proibido de liderar as entrevistas sobre coronavírus realizadas no ministério, transferidas para o Palácio do Planalto e sob o comando do chefe da Casa Civil, Braga Netto. O objetivo era dispersar a atenção ao redor do ministro, mas o efeito foi inverso, e Mandetta granjeou apoio interno.
Apoio
Se antes passava os dias em reuniões no gabinete, pouco falando com os demais ministros, agora mantinha encontros diários com colegas de igual ou maior prestígio popular, como Sergio Moro (Justiça) e Paulo Guedes (Economia). Seus alertas sucessivos do risco de colapso do sistema de saúde ante um fim precipitado da quarentena conquistaram maior adesão, sobretudo no meio militar.
Isolado, Bolsonaro se amparou nos filhos e na rede de empresários alinhados ao governo. Da família, ouviu que deveria confrontar Mandetta e insistir no uso de cloroquina no tratamento dos doentes. Dos empresários, que a retomada da atividade econômica era urgente, sob pena de um uma quebradeira generalizada. Na busca de esteio científico, voltou a se aproximar do ex-ministro Osmar Terra (MDB), a quem havia demitido pelo Twitter, sem ao menos um telefonema prévio.
Crítico do confinamento, Terra se tornou frequentador assíduo do gabinete presidencial, despachando com ministros e médicos, aos quais repassava dados e opiniões controversas sobre o comportamento da pandemia. Indignado com o tom obscurantista das afirmações do ex-colega, Mandettta pespegou-lhe o apelido de Osmar “Trevas”, pelo qual passou a ser chamado no ministério e entre os demais deputados.
Os dias passavam, as mortes aumentavam e a tensão não arrefecia. O diálogo com Bolsonaro se tornou inviável a partir de quinta-feira (2) quando, pressionado por Bolsonaro a pedir demissão, Mandetta exortou o presidente a exonerá-lo, numa dura conversa por telefone.
— O senhor que me demita – desafiou.
A resposta veio no domingo (5). Numa referência direta a Mandetta, Bolsonaro disse que membros do governo “estavam se achando”.
- Eram pessoas normais, mas de repente viraram estrelas e falam pelos cotovelos, tem provocações, mas a hora deles não chegou ainda, vai chegar a hora deles - disparou.
Na manhã seguinte, Bolsonaro entendeu que a hora havia chegado. Mandetta despachava com o primeiro escalão do ministério em seu gabinete quando o presidente chegou ao Planalto disposto a demiti-lo. Mandou redigir o ato de exoneração e chamou Terra ao palácio. Enquanto Mandetta encerrava uma reunião virtual com representantes do Conselho Federal de Medicina, seu destino era selado durante almoço de Bolsonaro com Terra, cinco ministros e dois médicos entusiastas da cloroquina.
No início da tarde, em nova reunião, desta vez com membros do Ministério Público Federal liderados pela sub-procuradora Geral da República, Célia Dourado, Mandetta admitiu não saber “até quando fico ministro da Saúde”. Ele mal terminou a teleconferência quando foi avisado que Terra supostamente já agia como seu substituto.
De dentro do palácio, o deputado gaúcho ligava para governadores e secretários de saúde sugerindo afrouxamento das medidas de reclusão social e se oferecendo para ajudar na relação com Bolsonaro. Um dos que receberam o telefonema foi o governador do Rio, Wilson Witzel, desafeto do presidente.
Conformado e tentando manter a altivez, Mandetta teve o gabinete tomado por assessores, secretários da pasta e deputados ligados à saúde. Quando a equipe lhe afiançou solidariedade e disse que sairia junto com ele, pediu a todos que ficassem até que o sucessor nomeasse seus próprios substitutos. Ao sair em direção ao palácio para participar da reunião ministerial no qual seu futuro seria decidido, assessores começaram a limpar as gavetas.
Mais uma vez, a conversa com Bolsonaro foi áspera. Mandetta foi cobrado pelo presidente e outros ministros a amenizar o tom nas manifestações públicas e preparar um plano de transição para o retorno da atividade econômica. Aceitou as imposições, mas deixou claro que não tinha condições de sair, tampouco o presidente de exonerá-lo enquanto o pico da pandemia não passasse. A noite caiu e a reunião não acabava, com o país em suspense sobre sua permanência no cargo. Eram quase 20h quando enfim veio a notícia de que Mandetta ficaria no ministério.
A sobrevida, porém, não o livrou das intrigas palacianas. Na quinta-feira (9), Terra e o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzini, foram flagrados conspirando ao telefone sua queda.
- Não precisa ser eu o ministro – amenizou Terra, que depois se negou a comentar o diálogo.
Desde o sábado, 28 de março, data da primeira altercação entre Mandetta e Bolsonaro, até esta sexta-feira (10), o número de mortos pela covid-19 no Brasil saltou de 114 para 1.056. O índice de letalidade praticamente dobrou, de 2,9% para 5,3%.