O eleitor que decide prestar atenção na propaganda eleitoral para encontrar propostas e, assim, escolher seu candidato à Presidência pode se decepcionar — e até se assustar. Isto porque os programas, basicamente, têm se resumido a trocas de acusações e graves ofensas entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL).
Em peças do petista, por exemplo, a campanha chama Bolsonaro de "pai da mentira", afirmando que diversas falas do atual presidente são falsas, como uma em que diz que Lula iria legalizar o aborto. Do outro lado, o chefe do Executivo que busca a reeleição utiliza parte de seu espaço para afirmar que o seu adversário foi o mais votado nos presídios, alegando que este é o favorito dos criminosos.
Bolsonaro também alegou que Lula não foi absolvido das acusações que o levaram a ser preso e destacou que o petista não era um homem livre, como prega aos seus eleitores. Houve resposta por parte do ex-presidente, relacionando a sua prisão a um complô entre Sergio Moro e Bolsonaro, que levou o ex-juiz a ser ministro.
Os eleitores ainda ficaram no meio de outros fogos cruzados, como Lula utilizando uma entrevista de Bolsonaro ao jornal The New York Times, em 2016, em que diz que, se estivesse em um ritual cultural de uma tribo, teria coragem de comer a carne de um índio, acusando o presidente de canibalismo. Bolsonaro chamou o petista de "pinguço", "ladrão" e "líder de quadrilha". E estes são apenas alguns exemplos das campanhas, entrevistas e debates.
Em razão da troca de ofensas, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) precisou intervir algumas vezes, concedendo direitos de reposta para ambos os lados.
O objetivo
Mas o que explica o acentuado declínio no nível da disputa? De acordo com o cientista político André Rosa, a campanha negativa tem como claro objetivo aumentar a rejeição do rival. Para o especialista, neste ponto da eleição já não importa mais a questão de propostas, mas, sim, de derrubar o adversário. E o pleito, em sua visão, será decidido no detalhe e, por isso, os ataques estão cada vez mais incisivos.
— Todos estão utilizando o máximo possível de arsenal de guerra para vencer. Então, o principal objetivo, principalmente da campanha do PT, é não deixar que o Bolsonaro cresça nesta reta final, já que ele tem diminuído a rejeição e a avaliação do governo também tem melhorado — aponta Rosa.
Para Sérgio Praça, cientista político da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a campanha do PL tem influenciado mais o tom da campanha. O PT tem respondido, reforçando a escalada para evitar a repetição do cenártio de 2018. Praça afirma que, à época, Bolsonaro partia mais para o ataque e Fernando Haddad (PT) ficou mais focado em programa de governo.
— Com as redes sociais, se tem um incentivo muito grande para mentiras, insultos e difamação. Assim, acaba ficando meio irresistível para os candidatos entrarem nisso. É aquela coisa: se um faz, o outro não deveria fazer também, mas como o outro se protege? — questiona, apontando que, por este motivo, percebe-se que a campanha de Lula parece estar "sem rumo", até mesmo nos debates, porque o petista está "desconfortável".
É a mais baixa?
André Rosa reconhece que o nível da atual campanha está baixo, mas pontua que este não é um fenômeno deste ano. O cientista político relembra que, em 2014, a campanha de Dilma Rousseff (PT) criou uma propaganda eleitoral em que Marina Silva (Rede Sustentabilidade) — hoje apoiadora de Lula — tira um prato de comida dos brasileiros, em uma campanha que considera "extremamente negativa":
— Desde a redemocratização, a gente tem tido um uma campanha negativa muito pesada, de ambos os lados. E, neste segundo turno, está muito mais incisivo e se percebe que os ataques estão equalizados. Não dá para dizer que o Bolsonaro está atacando mais ou que o Lula está atacando mais.
Rosa ainda aponta que Haddad não recorreu a uma campanha negativa em 2018 porque não é o perfil do candidato, diferentemente do marketing político de Lula, que já vai mais no sentido de desconstrução de imagem, estratégia que vem sendo cada vez mais utilizada por todos os candidatos.
Já Praça acredita que, além da campanha deste ano, a única que se compara em nível de tantos ataques e acusações pessoais foi a de 1989, com Fernando Collor usando, em seu programa, um depoimento de Miriam Cordeiro, ex-namorada de Lula, revelando que eles tinham uma filha, Lurian, e que o petista a tinha pressionado a abortar.
— Foi o que deu a Collor a eleição? Ajudou bastante, mas é sempre difícil saber. Depois disso, não lembro de nenhuma eleição ser de um nível muito baixo, não — destaca o cientista político da FGV.
O eleitor
E como o eleitor recebe este tipo de conteúdo? Rosa aponta, por exemplo, que um grupo de pessoas deve ficar decepcionado pela falta de propostas. Na outra ponta, o cientista político enxerga um público que será estimulado à violência verbal contra opositores de ideologias diferentes.
— Vejo com muita preocupação. Temos uma cultura política ainda muito nova, pois passamos por uma ditadura militar não tem 40 anos. Então, temos ainda uma cultura forte do autoritarismo e os discursos de muitas pessoas se voltaram ao autoritarismo, em uma campanha extremamente negativa, com palavras de baixo calão, onde as crianças estão aprendendo desde cedo e vão reproduzir na adolescência, na idade adulta. Isso também passa pela formação psíquica do eleitor — aponta o cientista político.
Praça acredita que o eleitor não deve ser atingido pela campanha negativa, uma vez que parte dele próprio o nível do debate público entre Lula e Bolsonaro — e esta agressão deve modificar muito pouco a orientação de quem já estava predisposto a votar em determinado candidato.
— O eleitor é corresponsável por isso tudo, não só as campanhas. Se tivesse um presidenciável louco para mentir e insultar, sem falar de propostas, mas com um público dizendo "queremos propostas", seria diferente. Mas a natureza humana não é assim. As pessoas mentem, insultam e, sim, é clichê, mas acaba voltando para a polarização. Se os dois lados não estivessem ideologicamente tão opostos, seria diferente. Quer dizer, tem uma tempestade perfeita de fatores que levam a uma campanha suja e sem propostas concretas — aponta Praça.
É tendência?
Agora, com a televisão, o rádio e as redes sociais tomadas por ofensas e trocas de acusações, fica a pergunta: este será o tom de todas as próximas eleições? Será que as propostas serão deixadas de lado, dando espaço para uma avalanche de ataques pessoais? Os especialistas se dividem.
Para Rosa, esta eleição chegou neste tom por ser muito acirrada, com um candidato sendo muito mal avaliado após passar pela pandemia e o outro vindo de denúncia de corrupção, que o levaram a ser preso. Ambos extremamente populares.
— Esta eleição é bem específica. Não acredito que, por exemplo, com Geraldo Alckmin sendo sucessor do Lula na campanha que vem, ele vá levar por este lado. Até porque não faz muito o perfil dele. E a gente pode perceber, principalmente pelo debate da Band, entre Lula e Bolsonaro, que foi uma constante troca de acusações e de baixo nível. Palavras de baixo calão a todo momento — reflete.
Praça acredita que as próximas eleições tendem a ser piores, isso porque as campanhas são niveladas pelo movimento na internet e, de acordo com o especialista, o "TSE não sabe o que fazer com as redes sociais e com os aplicativos":
— Está sendo impossível regular e, enquanto tivermos isso, acho que vai ser assim. Sou pessimista porque não é muito difícil pensar que daqui a quatro anos, oito, 12 anos as redes sociais sejam menos importantes para os cidadãos. Pelo contrário, a tendência é que sejam cada vez mais.
E as propostas?
O cientista político Caio Barbosa destaca que, apesar de as campanhas apostarem em ataques, é possível — além de importante — encontrar os programas dos candidatos nos sites de ambos:
— É um pouco difícil para os eleitores poderem navegar neste universo de fake news e de ataques, mas acho que é importante acessar os sites dos candidatos e buscar quais são as propostas deles para cada área. Pois, quando você assiste aos programas eleitorais na TV, até encontra algumas propostas, mas vai ser sempre misturada com os ataques e com as denúncias. Então, o eleitor que estiver buscando somente as questões de propostas, cabe mais a ele realmente tomar a iniciativa.
O especialista ainda aponta que a eleição se tornou uma "guerra santa", com as religiões sendo o centro das discussões, e com um nível tão baixo que, segundo ele, não tem precedentes, apesar de diversas outras campanhas terem apresentado um tom negativo no passado. Mesmo assim, acredita que isso pouco influenciará na decisão dos eleitores.
— O que as pesquisas têm mostrado é que há um voto muito consolidado, entre 94% e 95%. Ou seja, uma margem muito pequena de eleitores estaria ainda aberta a mudar seu voto. Ambos são muito conhecidos, e o eleitor já tem uma opinião formada. Então, quando você tenta fazer uma campanha negativa, é difícil convencer esse eleitor que já segue esse candidato. O mais provável é que essa campanha negativa dos dois lados meio que anule os efeitos um do outro, deixando no zero a zero — completa.