O resultado do primeiro turno da disputa pela Presidência da República consolidou a divisão do eleitorado brasileiro em torno de dois nomes com apelo eleitoral tão forte que se mostram mais relevantes do que seus próprios partidos, imunes a ataques e capazes de esmagar tentativas de construir uma terceira candidatura de peso no país.
A concentração do embate político nas figuras de Jair Bolsonaro (PL) e de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) resgata uma tradição personalista da política nacional, reflete o crescimento de uma nova direita no mundo e indica que os concorrentes ao Palácio da Planalto também se fortalecem pela rejeição de setores da sociedade ao adversário – um cenário que desperta preocupação entre especialistas em relação ao futuro da democracia no Brasil.
Ainda no começo da corrida eleitoral, havia dúvida se uma terceira via teria potencial de romper a polarização entre bolsonaristas e lulistas. As sondagens de opinião dos últimos meses e o resultado das urnas demonstraram que a força dos dois principais representantes da esquerda e da direita esfacelou qualquer possibilidade de candidatura intermediária. Todos os outros concorrentes, somados, alcançaram apenas 8% dos votos válidos – com a terceira colocada, Simone Tebet (MDB), quase 40 pontos percentuais atrás de Bolsonaro e a mais de 44 pontos de Lula.
— Isso indica que o sistema partidário está implodindo no Brasil. O centro democrático praticamente não existe, e o PSDB foi reduzido a um partido nanico — analisa a coordenadora do programa de pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Maria do Socorro Sousa Braga.
Na avaliação da cientista política, os candidatos do PL e do PT assumiram uma dimensão maior do que a das próprias siglas que representam:
— Uma das razões para isso é que cada um desses dois candidatos passou a representar uma visão de país, um projeto político. De um lado, Lula tentando voltar a uma democracia liberal com redução das desigualdades sociais e defesa do Estado de direito, e Bolsonaro com uma postura mais conservadora, até reacionária em certa medida, baseada em uma agenda religiosa e comportamental e uma noção mais limitada da democracia, majoritária, de cima para baixo.
Professor da pós-graduação em Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com atuação em public choice (que analisa a política sob o ponto de vista econômico), Giacomo Balbinotto Neto lamenta que o debate esteja muito centrado na figura pessoal dos dois candidatos, e não em propostas concretas, mas não acredita em limitação democrática sob Bolsonaro.
Isso indica que o sistema partidário está implodindo no Brasil. O centro democrático praticamente não existe, e o PSDB foi reduzido a um partido nanico
MARIA DO SOCORRO SOUSA BRAGA
Coordenadora do programa de pós-graduação em Ciência Política da UFSCar
— Se houvesse risco real à democracia, veríamos isso por meio da saída de capital e de investidores do país, o que não ocorre. Ao mesmo tempo, o Brasil está com um pé para ingressar na OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), que prevê o respeito a regras democráticas — argumenta.
O historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Aarão Reis entende que a personalização é um traço recorrente na história política brasileira, por meio de nomes como Getúlio Vargas, Leonel Brizola, Adhemar de Barros ou Carlos Lacerda, mas não exclusivo do país. Outros países registram casos semelhantes, a exemplo de Juan Perón, na Argentina, ou Lázaro Cárdenas, no México.
— Temos algo no Brasil, não importa se de direita ou esquerda, que é uma herança do sebastianismo, em relação ao rei de Portugal que foi para as Cruzadas e nunca voltou, ficando a esperança de que reencarnaria e salvaria Portugal de suas mazelas. É uma característica da América Latina, que vê os políticos como anjos vingadores que vão nos salvar — complementa o doutor em sociologia e professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Attila Barbosa.
Temos algo no Brasil, não importa se de direita ou esquerda, que é uma herança do sebastianismo, em relação ao rei de Portugal que foi para as Cruzadas e nunca voltou, ficando a esperança de que reencarnaria e salvaria Portugal de suas mazelas. É uma característica da América Latina, que vê os políticos como anjos vingadores que vão nos salvar
ATTILA BARBOSA
Doutor em sociologia e professor da UFPel
Nos últimos anos, esse fenômeno ganhou fôlego com a ascensão global de uma nova direita em locais como Estados Unidos, Rússia, Índia e países europeus, muitas vezes associada a grupos religiosos de caráter fundamentalista. No Brasil, enquanto Lula já era um líder consolidado à esquerda, essa nova conjuntura fortaleceu o surgimento de um nome equivalente à direita.
— Vivemos uma revolução digital que vem desestruturando a vida de todo mundo nos níveis econômico, social, cultural. Vivemos na sociedade da insegurança. Isso leva à busca por lideranças salvadoras que prometem resolver os problemas — interpreta Reis.
O especialista sustenta que nem toda personalização é forçosamente ruim no âmbito político, mas traz riscos.
— Tem um lado inevitável nesse fenômeno, que não é necessariamente negativo. Ao se encarnar uma série de propostas e referências em algumas pessoas, isso simplifica a luta política. Mas há um outro lado, ruim, alienante, quando as pessoas se agarram aos líderes como salvadores da pátria e deixam de pensar a política — diz Reis.
Rejeição a um concorrente aumenta a força do outro, afirma historiador
O historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Aarão Reis afirma que, no primeiro turno das eleições, foi possível observar alguns efeitos negativos da polarização personalista sobre a campanha à Presidência. Sobraram ataques mútuos e faltaram propostas para rediscutir o país.
— Um acusou o outro de corrupção, mas que ideias eles apresentaram para impedir a corrupção? A maioria do eleitorado optou pelos dois mais pelos universos que eles supostamente representam do que pelas propostas, embora eu não equipare Lula a Bolsonaro. Lula, apesar de muitos problemas, tem uma identificação com a construção democrática no Brasil que falta a Bolsonaro — diz Reis.
Giacomo Balbinotto Neto, da UFRGS, discorda dessa avaliação. Ele entende que a recorrente proposta de setores da esquerda brasileira de estabelecer uma regulação dos meios de comunicação é que poderia embutir algum risco democrático ao país.
— Desde os anos 1990, ficamos sabendo de inúmeras falcatruas por conta de uma imprensa independente. A liberdade de imprensa é a garantia do sistema democrático — afirma Neto.
Reis destaca ainda outro ponto. É a capacidade que os dois concorrentes têm de resistir politicamente a suspeitas e ataques com poucos arranhões ao capital eleitoral de cada um.
Reações
Hoje, o diálogo entre as bolhas de cada um é muito limitado. A rejeição ao outro lado facilita a tolerância com os defeitos de cada um, principalmente em momentos como a reta final de uma eleição
DANIEL AARÃO REIS
Historiador e professor da UFF
A contrariedade que diferentes setores da sociedade têm em relação a Bolsonaro e a Lula acaba por fortalecer o vínculo de cada um deles com outras fatias do eleitorado.
Ou seja, a rejeição ao petista ajuda a blindar Bolsonaro contra acusações de má gestão do combate à pandemia, por exemplo. E a rejeição ao candidato do PL reforça a proteção de Lula contra a vinculação a casos de corrupção em governos do PT.
— Hoje, o diálogo entre as bolhas de cada um é muito limitado. A rejeição ao outro lado facilita a tolerância com os defeitos de cada um, principalmente em momentos como a reta final de uma eleição — analisa Reis.
Parece haver uma dificuldade da nossa sociedade de reconhecer a importância dos partidos, até porque há poucas siglas que de fato levantam a bandeira partidária, que dizem de forma clara qual sua agenda
ANA SIMÃO
Historiadora e coordenadora de Relações Internacionais da ESPM
Na avaliação da historiadora e coordenadora de Relações Internacionais da ESPM Ana Simão, o quadro atual apresenta desafios para o futuro da democracia brasileira.
— Parece haver uma dificuldade da nossa sociedade de reconhecer a importância dos partidos, até porque há poucas siglas que de fato levantam a bandeira partidária, que dizem de forma clara qual sua agenda. É fundamental para a democracia termos partidos fortes, menos dependentes do personalismo. Mas também temos uma dificuldade de renovação dos quadros nos grandes partidos — analisa Ana.
Tradição individualista
Veja outros nomes de forte apelo popular no país, quase sempre acima dos partidos a que pertenceram
Adhemar Pereira de Barros (1901-1969)
Foi governador por duas vezes de São Paulo, prefeito da capital paulista e candidato por duas vezes à Presidência da República (1955 e 1960). Fundador do Partido Social Progressista (PSP), considerava que a sigla era uma extensão de seu poder pessoal. O político deu origem ao que viria a ser chamado de "ademarismo", relação política pela qual um líder popular não prescinde das estruturas partidárias, mas age com considerável autonomia em relação a elas.
Carlos Lacerda (1914-1977)
Jornalista e político fluminense, campeão de votos como deputado federal pelo Distrito Federal e governador da Guanabara. Duro opositor do segundo governo de Getúlio Vargas, o integrante da União Democrática Nacional (UDN) foi alvo do famoso atentado da Rua Toneleros. A descoberta de envolvimento da chefia de segurança de Getúlio no crime levou a uma crise institucional. Lacerda tinha grande popularidade à frente do jornal Tribuna da Imprensa, do qual era fundador.
Getúlio Vargas (1882-1954)
Gaúcho de São Borja, tornou-se presidente por meio da célebre Revolução de 30 e ficou 15 anos no poder. Nesse período, implantou um estilo personalista, centralizador e autoritário. Foi forçado a renunciar por pressão do Exército e voltou ao poder na eleição presidencial de 1950, quando foi eleito com quase 49% dos votos. Diante de uma dura oposição da UDN e da repercussão do atentado da Rua Toneleros contra o adversário político Carlos Lacerda, cometeu suicídio em 1954 – o que provocou comoção popular no país.
Leonel Brizola (1922-2004)
Considerado herdeiro político de Getúlio Vargas e João Goulart, o gaúcho de Carazinho foi deputado estadual, federal, governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro. Concorreu à Presidência da República como cabeça de chapa e como vice de Luiz Inácio Lula da Silva. Ligado ao PTB e, posteriormente, fundador do PDT, em 1961 comandou a Rede da Legalidade, que garantiu a posse do vice João Goulart após a surpreendente renúncia de Jânio Quadros da Presidência.