A interdição do Instituto Penal, que na prática extinguiu o regime semiaberto em Caxias do Sul, completou cinco anos nesta quinta-feira (5). São 587 apenados que deveriam estar em um albergue, mas estão cumprindo a pena em prisão domiciliar segundo os dados coletados pelo Ministério Público (MP). Desses, apenas 307 são monitorados eletronicamente. Os outros 280 estão em casa sem qualquer fiscalização. A situação está perto de ser amenizada, pois a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) divulgou que a licitação para reforma do Instituto Penal já teve uma empresa vencedora e as obras devem começar até outubro.
A situação em Caxias do Sul, que se repete por todo o Rio Grande do Sul, é de desvirtuamento do cumprimento da pena no semiaberto. Conforme a legislação, ao deixar o regime fechado, o apenado deveria ficar em um albergue e só pode sair durante o dia se tivesse trabalho — uma forma de adaptação no retorno ao convívio social.
Com o Instituto Penal interditado, todos os apenados que progridem do regime fechado são automaticamente enviados para a casa. Diante deste cenário, foi autorizado o uso do monitoramento eletrônico a todos os apenados do semiaberto. Porém, nem essa alternativa avançou porque o governo do Estado sempre teve dificuldade em oferecer todos os equipamentos necessários.
— A legislação não prevê (monitoramento eletrônico no semiaberto), mas é a realidade que nós temos. Seria menos aceitável ainda colocar mil pessoas num espaço para cem. Infelizmente, a lei também tem uma série de outras questões que não são aplicadas. A legislação (de Execução Criminal) é muito boa, mas nunca foi colocada em prática por total falta de estrutura — admite a juíza Milene Rodrigues Fróes Dal Bó, que decidiu pela interdição em 2016 e hoje atua em substituição na Vara de Execuções Criminais Regional (VEC).
Diante da inércia do governo do Estado, o MP ajuizou, em 2018, uma ação civil pública para que sejam providenciadas vagas para o regime semiaberto no município. Na ocasião, a situação em Caxias do Sul foi descrita como um "faz-de-conta". A sentença foi procedente e a Justiça concedeu 18 meses para o Estado cumprir a decisão — prazo que terminará em novembro.
— Na prática, concordamos (com o uso das tornozeleiras) por não ter outra saída viável. Simplesmente, não temos onde colocar o preso. Foi por isso que (em 2018), ajuizamos essa ação e estamos no aguardo do cumprimento do Estado. O que a lei prevê não é isso que está acontecendo. O monitoramento eletrônico é apenas para saídas temporárias ou presos que estão em prisão domiciliar, que é prevista para circunstâncias específicas do regime aberto. Está tudo errado — critica o promotor João Francisco Ckless Filho.
De acordo com a Susepe, a empresa Infinito Construções e Instalações venceu o processo licitatório com uma proposta de R$ 487.800,00, o que prevê um albergue com 80 vagas. Após a apresentação da documentação necessárias, será feito o contrato e a ordem de início das obras. A expectativas é que a reforma do Instituto Penal seja iniciada em 60 dias.
— Temos o total interesse em reativar o mais rápido possível. O aporte é recurso do Estado e só é aguardada essas questões burocráticas. Será feita reforma elétrica, estrutural e adequação de melhorias. Temos urgência para que volte a funcionar. Por óbvio, não exclui a tornozeleira, que é uma decisão judicial também. É uma medida alternativa, mas não ao regime, que continua o mesmo — declara o superintendente da Susepe, José Giovani Rodrigues de Souza.
Na Serra, 580 apenados aguardam tornozeleira
A interdição do Instituto Penal também foi uma aposta no monitoramento eletrônico. Em diversas manifestações, a juíza Milene ponderou que as tornozeleiras são uma sistemática mais eficiente do que fazer o detento pernoitar no albergue. A dificuldade é o governo do Estado disponibilizar os equipamentos.
Seis meses após a interdição do albergue, em março de 2017, Caxias do Sul possuía 268 apenados em prisão domiciliar aguardando pela instalação do dispositivo. Em dezembro de 2018, a Susepe inaugurou o Instituto Penal de Monitoramento Eletrônico da Serra, estruturado no prédio do antigo Instituto Penal. Na ocasião, foi exaltada a ampliação do sistema para permitir monitorar os 504 apenados que ainda estavam sem fiscalização.
Um ano depois, em dezembro de 2019, o governo do Estado anunciou um contrato de aquisição de 10 mil tornozeleiras, o que permitiria monitorar 100% dos apenados gaúchos que estavam em prisão domiciliar. Na época, eram 297 apenados monitorados eletronicamente na Serra.
Nos últimos anos, a Susepe parou de divulgar o número de apenados que aguardam pelos equipamentos. O número de 580 apenados em prisão domiciliar sem a devida fiscalização na região é confirmado pela VEC Regional e pelo MP, que alertam para a ilegalidade da situação.
— Existe uma fila de espera. A empresa tem dificuldade de entrega do material em virtude da pandemia. Afetou a produção. Semanalmente são entregues dispositivos, mas o quantitativo é inferior à demanda que estamos recebendo. Essa dificuldade é para todo o Estado, pois a distribuição pelas regiões é equânime. Das 10 mil tornozeleiras, só temos 6 mil. Temos mais 4 mil contratadas que a empresa não está conseguindo entrega — explica o superintendente da Susepe.
Por enquanto, não há prazo para monitorar todos os apenados da Serra. A Susepe afirma que há tratativas com a empresa responsável, inclusive testes com um novo equipamento feito com uma matéria-prima diferente.
— O que se está fazendo são providências no sentido de ajustar da melhor maneira, compor uma situação que é caótica no sistema prisional. (Apenas em Caxias), são 280 apenados que deveriam estar abrigados em um estabelecimento adequado, mas estão em prisão domiciliar sem sequer a tornozeleira. (Esses criminosos condenados) estão tendo uma vantagem, um cumprimento de pena com regras e uma fiscalização mínima — denuncia o promotor Ckless Filho.
Juíza não acredita em retorno do regime semiaberto tradicional
A reforma do Instituto Penal é uma notícia positiva, mas o número de vagas que será disponibilizado é mais um indício de que o sistema de albergue não é uma realidade. O prédio só comporta 80 presos, insuficiente para os 587 apenados que atualmente cumprem pena no regime semiaberto. Ou seja, menos de 14% do necessário.
— Acredito que esse é uma caminho sem volta. Quiçá teremos o regime fechado com vagas suficientes. Há problemas bem mais graves para dar conta (do que a falta de albergue). A tornozeleira é mecanismo eficiente e grave, bastante punitivo. Pode não parecer, mas é bem restritivo e pesado para quem cumpre. O sistema de albergue acho que não irá mais acontecer. Não é viável, até economicamente. O albergue, em teoria, é bom, mas apenas se funcionasse como idealizado, o que nunca ocorreu — considera a juíza Milene.
A Susepe admite que os esforços da administração pública são para criação de vagas em regime fechado — inclusive há a construção de uma Cadeia Pública anunciada para Caxias do Sul.
— É uma questão de dados. Temos um déficit estrutural histórico, que gira em torno de 16 mil vagas no fechado. É o regime mais gravoso, então o Estado está canalizando os esforços e recursos para a construção de cadeias. No semiaberto, temos essa opção do monitoramento, em que buscamos a melhor eficiência e controle do monitorado. O controle é bastante agressivo com a atual tecnologia — afirma o superintendente Souza.
A juíza Milene relata que há várias discussões sobre regulamentar o monitoramento eletrônico. Diante da falta de vagas em albergues, cada juiz tem estabelecido o funcionamento em sua comarca da maneira que considera mais adequada — o que a magistrada de Caxias do Sul reforça não ser o papel do juiz.
— Esse é um momento em que são debatidos uma série de graves problemas, mas sim há vários estudos em andamento. É preciso acompanhar como evoluem, mas é uma questão importante — afirma a magistrada.
Apesar de não ser infalível, a Susepe garante que a tornozeleira eletrônica é bastante confiável. O sistema está em constante atualização e melhoria, afinal é uma tecnologia. Sobre aqueles que burlam o sinal do GPS, o superintendente Souza cita o resgate de um detento em Caxias do Sul, em junho, em que o rastreamento de um apenado — mesmo com uma perda de sinal momentânea — comprovou a participação dele no ataque.
— Por óbvio, a tornozeleira não impede o crime. O que permite é monitorar, então poderá fazer aferição e até servir de instrumento probatório de que este apenado não está apto para voltar ao convívio social e, consequentemente, deve regredir ao regime mais gravoso. O também pode acontecer no semiaberto tradicional, em que os presos deixam o albergue para trabalhar. Os dados demonstram que são baixo números de intercorrência de retirada ou danos na tornozeleira. É uma discussão que precisa ser fomentada de forma mais ampla, com a sociedade em geral. Que tipo de progressão de pena se quer? — questiona o superintendente da Susepe.
A INTERDIÇÃO
:: Também conhecido como albergue prisional, o Instituto Penal foi interditado no dia 5 de agosto de 2016. A decisão judicial foi baseada na falta de agentes penitenciários e no ambiente hostil gerado pela fiscalização ineficiente. Em alguns turnos, conforme a decisão, haviam apenas dois servidores para atender a mais de 120 detentos.
:: Com a equipe reduzida incapaz de evitar fugas e entradas clandestinas, acreditava-se que o albergue estava servindo de álibi para apenados cometerem novos crimes, principalmente na vizinhança do bairro Sagrada Família. Quando reconhecidos em investigações policiais, os abrigados argumentavam ter respondido às contagens pela noite e pela manhã e que, portanto, tinham passado a madrugada recolhidos no albergue.
:: A falta de controle também era vista em delitos praticados nos próprios alojamentos. Sem divisões para apenados de grupos rivais, agressões e ameaças eram comuns. O entendimento na época era que, mesmo aqueles detentos que queriam mudar de vida, acabavam sucumbindo ao serem confinados naquele ambiente.
:: Outro ponto destacado na decisão é que a maioria dos apenados do regime semiaberto já cumpria pena fora do albergue, pois a casa tinha capacidade para apenas 120 detentos e havia mais de 250 condenados em regime semiaberto. A interdição, portanto, apenas escancarava o problema e exigia do governo do Estado alternativas, como a ampliação do monitoramento eletrônico.