Em manifesto conjunto com entidades representantes do setor produtivo de vinho do Rio Grande do Sul, a prefeitura de Bento Gonçalves anunciou medidas para evitar novos casos de trabalho análogo à escravidão na cidade. Em entrevista concedida ao vivo para o programa Atualidade, da Rádio Gaúcha, na manhã desta terça-feira (28), o prefeito do município onde foram resgatados 207 safristas, Diogo Siqueira, destacou o amparo prestado pela administração municipal, citou ações para evitar que ocorram novos casos na cidade, como a fiscalização e a proposta de um "pacto de sociedade". Ainda na entrevista, disse que as vinícolas e produtores que contrataram o serviço terceirizado também são vítimas do ocorrido, o que gerou repercussão negativa e motivou uma retratação do representante, reconhecendo que as vítimas, neste caso, foram os trabalhadores resgatados.
— Eu vejo que todos são vítimas. Cada agricultor, cada vinícola que contratou de forma terceirizada, cada uma pessoa dessas é uma vítima tanto quanto as pessoas que estavam lá dentro — disse o prefeito na entrevista, em um contexto no qual colocou a comunidade do município, como um todo, na mesma posição, diante do fato do esquema de exploração não ter sido percebido.
Mesmo a lei determinando que empresas contratantes devam estar a par da forma que o trabalho terceirizado é prestado, o prefeito reforçou, ainda ao vivo, que as famílias cooperadas não sabiam da situação e que, por isso, seriam vítimas.
— Nossos agricultores contratam de empresa terceirizada, todo mundo vai na confiança, é impossível que cada família soubesse — afirmou logo em seguida, após ser questionado sobre a declaração.
Após a sequência de críticas endereçadas ao prefeito, pelos ouvintes do programa, Siqueira enviou uma retratação, destacando que "todos estamos muito mexidos, tristes e indignados com os fatos ocorridos". Na nota ele afirma que "as vítimas são aqueles trabalhadores, aos quais a prefeitura prestou todo apoio e acolhimento. O que eu quis mostrar foi que esse episódio execrável não representa a história e a prática da região, que não pode ser estigmatizada por isso".
Ainda durante a entrevista ao Atualidade o prefeito classificou o fato como sendo isolado e disse que deve servir como aprendizado, mobilizando ações preventivas para que não se repita.
— É um pacto de sociedade, a gente aumentar vistorias, a fiscalização, denúncias... Qualquer conversa estranha a prefeitura tem que ser informada, a cantina tem que ser informada, a Brigada, não importa. Estamos tendo várias conversas agora, fazendo vistorias em toda cidade, porque ninguém quer que isso se repita. Ninguém quer que aconteça isso de novo, não só em Bento Gonçalves, mas em toda a região que tem safra. A gente precisa aprender com essa situação pra que não aconteça de novo — afirmou Siqueira.
Questionado diversas vezes sobre as medidas que serão tomadas para garantir que situações análogas à escravidão não sejam novamente registradas na cidade, ele citou medidas como a criação de protocolo rígido a ser seguido pelas equipes de assistência social e fiscais de outros setores no sentido de garantir condições adequadas a migrantes que chegam à cidade em períodos de safra, por meio de cadastro, além de realizar vistorias em hospedagens temporárias. Outros alojamentos e residências sem CNPJ, segundo ele também estão sendo mapeados para vistoria e fiscalização.
Ele afirmou que, até o final desta safra, deverá ser estruturada a estratégia de prevenção ao trabalho em condições análogas à escravidão que também incluirá conversas com os sindicatos dos trabalhadores rurais da região, orientações do Ministério do Trabalho e Emprego aos agricultores e uma espécie de central de recebimento dos trabalhadores que chegam à cidade para os períodos de safra, independentemente do tempo que permaneçam no município.
Em mensagem de retratação após a entrevista, o prefeito elencou objetivamente as medidas a serem adotadas:
• Intensificação da fiscalização de fornecedores e prestadores de serviços do setor, buscando o cumprimento dos requisitos legais e trabalhistas.
• Será iniciado, nas próximas semanas, o programa de comunicação, conscientização e qualificação para toda cadeia vitivinícola, incluindo produtores rurais e safristas.
• Será criada a Central do Trabalhador. A unidade atenderá diretamente os operários, recebendo denúncias e orientando os profissionais.
• Todo o segmento promoverá os aprimoramentos internos de fiscalização e ouvidoria, assegurando que as ações de terceirizados também sejam acompanhadas com rigor.
• Tanto o poder público como o setor privado seguirão atuando em conjunto com as forças responsáveis pela investigação e pelo acompanhamento dos direitos humanos e trabalhistas – o que certamente acarretará em novas ações, que serão oportunamente divulgadas.
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Relembre o caso
O caso dos trabalhadores em situação análoga à escravidão foi denunciado após seis homens conseguirem fugir do local onde eram mantidos e buscar contato com a Polícia Rodoviária Federal, que prestou auxílio e deu início à operação. Um dos denunciantes já havia gravado vídeo com um celular e publicado em uma rede social reclamando das condições de trabalho. Ele relata que foi agredido pelos supostos empregadores por isso. O homem contou à polícia que aproveitou quando os agressores foram atender uma ligação e pulou de uma janela, correndo até um mato próximo do local onde estava. Ele e mais dois trabalhadores, que estavam com ele, aguardaram até as 3h da quarta-feira (22) para sair e pedir ajuda.
Ainda na quarta, uma operação conjunta de PRF, Polícia Federal (PF) e MTE flagrou 180 homens no alojamento, em situação precária de hospedagem, higiene e alimentação. À equipe, trabalhadores relataram que sofriam violência verbal, física, ameaças de morte e eram alimentados com comida estragada. Após o primeiro flagrante, outros 27 homens foram resgatados, na quinta, e encaminhados ao ginásio.
O aliciador da mão de obra e administrador da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, Pedro Augusto Oliveira de Santana, chegou a ser preso ainda na quarta, mas foi liberado no dia seguinte após pagar fiança de R$ 39.060. Natural de Valente (BA), o empresário está sendo investigado. Ele trabalharia na região, com prestação de serviço, há pelo menos 10 anos, conforme o MTE.
Os homens resgatados atuavam, principalmente, na colheita da uva, em propriedades rurais do município. As três vinícolas — Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton —, citadas pelos trabalhadores e que contrataram o serviço terceirizado da prestadora, afirmaram em notas não ter conhecimento da situação em que os homens eram expostos até a operação, e que irão colaborar com a investigação. As investigações seguem com o MTE, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal (PF).
Além de vinícolas, 23 proprietários rurais contratavam serviços de trabalhadores resgatados em Bento. Os nomes dos 23 não foram divulgados. A investigação ainda aponta que os trabalhadores atuavam na carga e descarga da uva em vinícolas e na colheita da uva nas propriedades rurais.
O que dizem as vinícolas?
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas publicaram comunicados.
O que diz a Aurora:
"NOTA OFICIAL
Em respeito aos seus associados, colaboradores, clientes, imprensa e parceiros, a Vinícola Aurora vem à público para reforçar que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão e se solidariza com os trabalhadores contratados pela terceirizada Oliveira & Santana.
As vítimas são funcionários da Oliveira & Santana, empresa que prestava serviços às vinícolas, produtores rurais e frigoríficos da região.
A Aurora já se colocou à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos e está prestando apoio às vítimas. A companhia também está trabalhando em conjunto com o Ministério Público Federal e com o Ministério do Trabalho para equalizar a situação em busca de reparo aos trabalhadores da Oliveira & Santana.
A vinícola está tomando as medidas cabíveis e reitera seu compromisso com todos os direitos humanos e trabalhistas, assim como sempre fez em seus 92 anos. Ratifica ainda que permanece cumprindo com suas obrigações legais e com a sua responsabilidade também perante ao valor rescisório a cada trabalhador contratado pela Oliveira & Santana.
A Aurora conta com 540 funcionários, todos devidamente registrados e obedecendo a legislação trabalhista. Porém, na safra da uva, dentro de um período de cerca de 60 dias, entre janeiro e março, a empresa depende de um grande número de trabalhadores, se fazendo necessária a contração temporária para o setor de carga e descarga da fruta, devido à escassez de mão de obra na região.
Quanto à empresa terceirizada, cabe esclarecer que a Aurora pagava à Oliveira & Santana um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas. A terceirizada era a responsável pelo pagamento e pelos devidos descontos tributários instituídos em lei. A Aurora também exigia os contratos de trabalhos da equipe que era alocada na empresa.
Todo e qualquer prestador de serviço da Aurora, da mesma forma que os funcionários, recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta, sem distinções.
A vinícola também oferecia condições dignas de trabalho no horário de expediente e os gestores responsáveis desconheciam a moradia desumana em que os safristas eram acomodados pela Oliveira & Santana após o período de trabalho.
Por fim, ratificando seu compromisso social, a Aurora se compromete em reforçar sua política de contratações e revisar os procedimentos quanto à terceiros para que casos isolados como este nunca mais voltem a acontecer."
O que diz a Salton:
"Comunicado Salton
Em respeito aos seus colaboradores, clientes, acionistas, fornecedores e toda a sociedade, a Salton manifesta profundo lamento e total repúdio a qualquer ato de violação dos direitos humanos e trabalho sob condições precárias e análogas à escravidão.
A empresa atua há mais de 100 anos guiada pelo rigoroso cumprimento das leis e pelo respeito aos direitos humanos, sociais e trabalhistas, possuindo diretrizes e processos formalizados para a contratação de fornecedores e prestadores de serviços, com práticas de gestão e acompanhamento do cumprimento da legislação, em especial em questões trabalhistas e sociais.
Nenhum dos trabalhadores resgatados era empregado da Salton e sim da prestadora de serviços Fênix, que atua na região da Serra Gaúcha, com sede em Bento Gonçalves há mais de 10 anos, fornecendo serviços não somente para empresas do setor vitivinícola, mas também para produtores rurais e empresas de outros setores, como aviários e frigoríficos. O resgate dos trabalhadores não ocorreu na Salton.
Prezando pela transparência de suas ações, a Salton ressalta que não possui qualquer atividade de colheita em Bento Gonçalves que demande mão-de-obra terceirizada. O contrato de prestação de serviços com a Fênix foi firmado unicamente com objeto de carga e descarga de caminhões em Bento Gonçalves.
A Salton promoveu a averiguação técnica para cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço e respeitou a integralidade das melhores práticas trabalhistas junto a estes trabalhadores.
A Salton possui uma estrutura de ouvidoria junto ao seu RH e canal de denúncia externo, que garante o anonimato do denunciante e está amplamente disponível nas dependências da empresa, tanto para colaboradores quanto para fornecedores. Não houve nenhuma denúncia sobre o tema.
A Salton tomará as medidas cabíveis, com toda a seriedade e respeito que a situação exige e trabalhará prontamente, não apenas para coibir acontecimentos com fornecedores e prestadores de serviços, mas também para promover a conscientização das melhores práticas sociais e trabalhistas. A empresa acredita na sustentabilidade como premissa de negócio e é signatária do Pacto Global da ONU, realizando diversos projetos para reforçar a responsabilidade social da empresa e seu compromisso como empresa cidadã.
A Salton ressalta que adotará medidas austeras para que os fatos sejam devidamente esclarecidos, de forma transparente e colaborativa junto às autoridades públicas.
Família Salton"
O que diz a Cooperativa Garibaldi:
"Nota à imprensa
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa sob investigação no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos."