Debaixo dos parreirais de regiões mais baixas da Serra, parte dos agricultores da região começou nas últimas semanas a colher as variedades mais precoces de uvas. Ainda é pouco comparado ao que acontecerá nos próximos três meses, com a exalação do cheiro da uva pelo interior dos municípios e até mesmo por áreas urbanas, enquanto a produção é transportada em caminhões, carretos e máquinas agrícolas por estradas que cortam o principal polo produtor de uva do Estado. Com cerca de 85% da área plantada em solo gaúcho, a região ainda não vive o forte da safra, mas já experimenta a perspectiva de uma nova colheita promissora.
Embora ainda seja cedo para se saber claramente como será a temporada _ já que fatores climáticos podem interferir diretamente na produção _, a projeção é de que pelo terceiro ano seguido a safra tenha boa qualidade. Em termos de quantidade, as avaliações variam entre especialistas: desde as mais conservadoras, que falam em ao menos manter a média histórica (de 700 a 750 mil toneladas na região de 49 municípios abrangidos pela Regional da Emater em Caxias do Sul) até as mais otimistas, que avaliam que será possível superar a do ano passado, quando a estimativa é de que foram colhidas 890 mil toneladas _ o que a colocou em um patamar histórico por ser a maior registrada pela Emater. Entre os agricultores, a projeção é de uma quebra de 30% em relação à última temporada. Mas, diante da supersafra passada, isso não é tratado como um cenário ruim.
A projeção de bons resultados passa pelo comportamento do clima ao longo deste ano, que teve 350 horas/frio registradas na estação do Instituto Nacional de Meteorologia (INMet), localizada na Embrapa Uva e Vinho em Bento Gonçalves. Essa medição corresponde à soma do número de horas em que a temperatura permaneceu abaixo de 7,2°C durante o outono e o inverno, período de dormência das videiras. A quantidade obtida neste ano situa-se um pouco acima da média histórica, que gira em torno de 330 horas/frio. Mas é a característica desse frio, com regularidade e constância, que é o ponto-chave para a boa brotação.
No período da floração, os especialistas apontam que o comportamento do tempo foi um pouco mais desafiador. Embora não tenha ocorrido geada tardia, um fenômeno que gera pavor aos agricultores, o mês de setembro teve chuva próximo de 155 milímetros na estação meteorológica do INMet em Bento Gonçalves. É acima dos 120 milímetros médios da região.
— Pegou a floração, que é o momento mais crítico das plantas. E tiveram as principais variedades — Niágara, Bordô e Isabel —um considerável abortamento de flores. Então, os cachos ficaram ralos — explica engenheiro agrônomo Enio Todeschini, extensionista do escritório Regional Emater/Ascar de Caxias do Sul.
Próximo à metade de outubro, iniciou-se um período de estiagem com noites frias, o que também prejudicou a floração em alguns casos. Mas, conforme o doutor em Fisiologia da Produção Henrique Pessoa dos Santos, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho, não foi um impacto generalizado.
Torcida pelo clima
Agora, a expectativa é o que vai acontecer nas próximas semanas, porque o impacto na safra será direto. O pesquisador da Embrapa Uva e Vinho diz que o melhor cenário é o que tem chuva regular no início de dezembro e, depois, quantidades reduzidas de umidade, temperatura maior e aumento de insolação, o que favorece a maturação mais uniforme e elevada da fruta. Porém, neste ano, a estiagem foi bem acentuada ainda em novembro, quando choveu 38 milímetros, menos de um terço da média histórica.
— Quando essa estiagem acontece um pouco antes, vamos pegar esse período de novembro, pode impactar no tamanho de baga, porque a baga vai ter uma expansão, vai crescer em tamanho, e depois vai entrar em maturação. Se a estiagem acontece antes, começa a diminuir o tamanho de baga. Bom, se eu estou pensando em uma uva de processamento, isso também é muito bom. Mas por que é muito bom? Porque quando eu quero fazer um vinho, a relação casca/polpa tem que ser maior. Então, quanto menor o tamanho da baga, maior a proporção de casca em relação à polpa. E na casca é onde estão os pigmentos, aromas, então tem todos esses compostos que vão dar aquele efeito de qualidade no produto final. Estiagem não é tão ruim para a videira — detalha o pesquisador da Embrapa, ao explicar que em regiões de solo raso a estiagem pode gerar um estresse grande para a planta e prejudicá-la.
Diante das condições atuais, os especialistas consultados pela reportagem são unânimes em dizer que esta safra deve ter boa qualidade, como aconteceu nos últimos dois anos. Só que a confirmação disso ainda depende do que vai acontecer nos próximos meses:
— Se durante a colheita chover muito, pode cair a qualidade da uva. Pode fazer surgir podridões de cacho. Cada dia de chuva em uma uva madura é um grau a menos. Vai complicando a graduação de açúcar. Preocupa muito daí a ocorrência de podridão ácida, Botrytis, Glomerella. São doenças que podem prejudicar a qualidade da uva, elevar a acidez da uva — explica o mestre em Produção Vegetal Luís Carlos Diel Rupp, que é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRS).
Mas, por enquanto, a previsão meteorológica é mais um alento para o agricultor. A tendência é de que janeiro tenha chuva próximo da média, enquanto fevereiro deve ser de estiagem.
Menor quantidade, mas melhor qualidade
A família Pagliosa mantém a tradição trazida pelos antepassados da Itália de cultivar parreiras, que são o carro-chefe da propriedade localizada no interior de Caxias do Sul. A plantação de quatro hectares em São Pedro da 3ª Légua se divide entre duas das principais variedades produzidas no Estado: a Isabel e a Bordô. Alguns cachos já começaram a amadurecer, mas a colheita vai ser iniciada na metade final de janeiro.
— Em relação ao ano passado, que foi uma supersafra, nunca tinha sido produzida tanta uva quanto no ano passado, a gente acredita que vai ter uma queda de uns 30%. Então, a gente vai ficar na média dos 100 a 110 mil quilos — conta o agricultor Alan Antônio Pagliosa, 19 anos.
Segundo ele, o motivo para esta expectativa de quebra está relacionado à safra passada, quando a grande produção sobrecarregou as videiras. Outro ponto levantado por ele é a estiagem dos últimos meses, que traz algum prejuízo para a plantação da família. Mas se a quantidade não alcançará a do ano passado, a projeção sobre a qualidade não poderia ser melhor:
— Este ano, como as parreiras produziram um pouco menos do que no ano passado, a gente espera que seja um ano melhor que no ano passado em termos de qualidade, porque a parreira consegue ter um pouco mais de energia por ter pouco fruto e consegue compensar no açúcar.
O grau glucométrico da uva, que é medido a partir da quantidade de açúcar no mosto, é particularmente importante para o produtor, porque ele é um fator determinante para a remuneração. Quanto maior o grau, maior é o valor pago pela indústria. No caso da família Pagliosa, depois de colhida, a fruta vai viajar cerca de 45 quilômetros para ser entregue na Cooperativa Nova Aliança, em Flores da Cunha.
— Como a gente faz parte de uma cooperativa, a gente visa se ajudar. Então, tendo um produto de qualidade, a gente é compensado em questão de valor. A gente se dá bem melhor com a qualidade — detalha Pagliosa.
Aposta na uva para o futuro
Na propriedade de Ivandro José Lerin, 48 anos, a aposta é na uva para o futuro. As videiras plantadas nos Caminhos de Pedra, em Bento Gonçalves, geram hoje 30% da renda da família. No passado, a crise do setor vitícola levou à redução da plantação de parreiras. Mas, agora, a percepção é de que a fruta mais plantada da Serra Gaúcha é uma boa área para obter resultados financeiros melhores.
— Por causa do cunho social da cooperativa. Hoje, eu estou na (Cooperativa) Garibaldi, e a prospecção de mercado dela está no espumante e alguns vinhos finos. Então, vai se optar por trabalhar com uvas viníferas e qualificar a produção delas — conta Lerin.
A propriedade tem 4,5 hectares plantados e a projeção é chegar a até seis hectares. A produção atual de 80 toneladas deverá, consequentemente, aumentar.
— A meta é chegar a 100 toneladas de uvas finas. É qualificar mesmo. Não é nem questão de volume, mas de qualidade final. Acabam nos remunerando melhor por isso e tu consegues ter um retorno financeiro melhor neste caso — explica o agricultor, ao dizer que a propriedade ainda passa por adequações com a plantação de novas parreiras e erradicação de outras que não são potencialmente interessantes para a estratégia da família.
Para a produção deste ano, a expectativa em relação à safra passada é de uma quebra de 30%. O agricultor atribui essa perspectiva também à alta produção dos últimos anos e à estiagem que tem ocorrido na região. Isso, de acordo com ele, faz com que o solo fique prejudicado em alguns pontos da propriedade. Diante disso, o futuro também deve requerer investimentos:
— Hoje, com o alto uso de máquinas, se procura ter áreas mais expressivas de produção, e acaba tendo solos bons e ruins. E aí, no momento em que o solo está bom, está seco; quando está chovendo, está ruim. Porque acaba-se aterrando alguns lugares para ganhar tempo na pulverização, que é o serviço que mais demanda tempo em uma propriedade. Então, a seca afeta bastante, porque o solo se compacta mais fácil já que é muita máquina no solo. Então, tem fatores que influenciam na produção final, na segurança. Pensando no futuro, já se pensa em começar a irrigar já.
A colheita dos Lerin começará no final de janeiro. O comportamento do clima até lá será importante para garantir a qualidade esperada até agora. Por enquanto, as videiras da família estão bem sadias, o que favorece a maturação dos cachos.
— Nós conseguindo uma uva de ótima qualidade, também tem um produto final de ótima qualidade. Embora o mercado brasileiro ainda não seja tão grande, para quem adquire o produto o custo não está tão baixo também. O custo elevado é devido à carga tributária, que é muito alta. Mas terão produtos de alta qualidade para apreciar em 2022.
Safra menor pode ser um benefício
Os produtores esperam mesmo colher menos uva nesta temporada em relação à passada. Não é difícil ouvir deles uma referência à última como uma supersafra, histórica ou incomparável. Mas o que pode parecer ruim para quem tem garantia de onde entregar a colheita tem outra faceta para produtores sem essa certeza ou que estão mais ligados à indústria. Esse último é o caso de Alcides Basso, 54 anos, que é dono da Vinícola Hugo Pietro.
Ele mantém com os irmãos uma propriedade com produção de uvas orgânicas na localidade de São João da 4ª Légua, em Caxias do Sul. Estima, assim como outros agricultores, uma redução de 25% a 30% nesta temporada em relação à anterior. Mas avalia que isso pode ser positivo:
— O ano passado, tivemos uma safra recorde. Temos a pandemia, que já dura dois anos, então, houve falta de garrafa. Hoje, nós temos bastante produto em estoque, no mercado. E tem uma safra 25% a 30% menor do que no ano passado, ao que tudo indica. Então, tivemos a safra grande e com falta de embalagens, que teve gente que não conseguiu fazer as vendas, e a safra nova está aí. Então, eu diria que, se for uma safra um pouco menor e de boa qualidade, estaria ótimo.
A produção média gira em torno de 130 mil quilos. Por enquanto, a colheita nos sete hectares plantados ainda não começou. Está prevista para o final de janeiro. Por cerca de 20 dias, Basso, dois irmãos e diaristas que serão contratados vão colher a fruta de uma única variedade, a Bordô, usada nos sucos da vinícola da família:
— É uma uva mais resistente à doença, ela tem mais sabor que as outras e é bastante tintória. É uma uva de boa qualidade para fazer corte com Isabel, por exemplo, a Bordô é uma uva especial — conta Basso, ao explicar que a perspectiva é de chegar nos próximos anos a 200 mil quilos de uva colhidas.
Para complementar a necessidade da produção da vinícola, a Hugo Pietro irá comprar ainda cerca de 10 milhões de quilos de uva de outros agricultores. Tudo será destinado à produção de sucos, investimento que passou a ser feito em 2005 pela família.
— Processando o próprio produto, a gente agrega um pouco mais de valor — pontua Basso.
Consumo de quase 3,5 quilos por ano
Um documento elaborado pela Embrapa Uva e Vinho traz dados sobre o consumo da uva in natura e dos principais produtos derivados dela no Brasil. Intitulado Vitivinicultura Brasileira: Panorama 2020, ele exclui a produção de vinhos para consumo e vendas nas propriedades rurais devido à falta de registros oficiais. O consumo per capita dos principais produtos foi calculado com base nas informações de comercialização e considerada a estimativa do total da população em julho de 2020. Para o cálculo, foram deduzidas as exportações e somadas as importações.
- 2,05 litros foi o consumo per capita de vinhos/ano, incluindo os espumantes (nacionais e importados). 2,66 litros foi o consumo per capita/ano se considerada a população com idade mínima de 18 anos.
- 3,49 quilos foi o consumo médio/ano de uva de mesa (consumo in natura e doces) por habitante. 0,14 quilo foi o consumo médio/ano de uvas passas por habitante.
- 1,36 litro foi o consumo per capita de suco de uva/ano.
Área plantada
- Em 2020, a área plantada com videiras no Brasil foi de 74.826 hectares, 1,20% inferior à verificada no ano anterior.
- O Rio Grande do Sul é o principal Estado produtor, com 62,51% da área vitícola nacional. São 46.774 hectares plantados.
- Os dados são do IBGE. A Emater/Ascar estima que a Serra concentre aproximadamente 39 mil hectares de parreiras.
As 10 variedades mais plantadas
O mais recente Cadastro Vitícola, que reúne dados do setor, se refere ao período 2013/2015. O documento traz, por exemplo, quais os principais cultivares da região. Na época, a estimativa era de 40 mil hectares plantados no Estado, mas agora o IBGE aponta que são mais de 46 mil. Ainda assim, o Cadastro Vitícola traz informações importantes que ainda são usadas como base pela cadeia. Uma delas é a respeito das variedades mais comumente plantadas no RS. Confira:
Isabel: 10.522,75 hectares
Bordô 9.319,24 hectares
Niágara Branca: 2.694,15 hectares
Concord: 2.174,91 hectares
Niágara Rosada: 2.008,82 hectares
Seibel 1077: 1.484,04 hectares
Jacquez: 1.093,97 hectares
Cabernet Sauvignon: 1.028,69 hectares
Chardonnay: 1.011,40 hectares
Fonte: Cadastro Vitícola
Estiagem é causada pelo La Niña
A estiagem registrada no Estado é causada pelo La Niña, evento climático que resfria as águas do Oceano Pacífico e que altera o calor e a umidade em diversas partes do mundo. Na quinta-feira (16/12), o Conselho Permanente de Agrometeorologia Aplicada do Estado do Rio Grande do Sul (Copaaergs) divulgou que a probabilidade do fenômeno permanecer até o final do verão está acima dos 80%, de acordo com os modelos de previsão para definição do evento El Niño Oscilação Sul (ENOS) do International Research Institute for Climate and Society (IRI).
O prognóstico climático para janeiro e março é que a chuva se mantenha próxima da média na Serra. Para fevereiro, a tendência é de que fique abaixo da média. Para as temperaturas do ar, a previsão é de que fiquem próximas da média em todo o trimestre.
O boletim do Conselho é elaborado a cada três meses por especialistas em Agrometeorologia de 14 entidades públicas estaduais e federais ligadas à agricultura ou ao clima.