“Os sinos estão tilintando, as ruas estão brancas de neve
As multidões felizes se misturam, mas não há ninguém que eu conheça
Tenho certeza que você vai me perdoar, se eu não me entusiasmar
Eu acho que tenho a tristeza natalina”
Os versos acima abrem a letra de The Christmas Blues, canção gravada originalmente pelo cantor Dean Martin, em 1953, e mais tarde por Bob Dylan, (no álbum Christmas in the Heart, de 2009). Enquanto a maioria dos clássicos natalinos versam sobre alegria, celebração e esperança, a letra dos compositores David Holt e Sammy Cahn traz outro aspecto da data que se aproxima, e que é muito comum: a angústia daqueles que se desencantam pelo Natal e pela virada de ano, e têm em dezembro um mês que a psicóloga caxiense Cassiane Rech descreve como “cinzento”.
– Muitas vezes se associa o Natal à família, ao reencontro, mas isso também faz acessar memórias negativas pesadas, que deixam as pessoas carregadas de mágoas e remorsos, não se permitindo passar esse mês bem. Também há pessoas que se cobram por mais um ano em que se viram estagnados, que não alcançaram o que almejavam, e nisso vem uma autocobrança, um autodesprezo e autodepreciação – explica a psicóloga, que é especialista em saúde mental.
Também chamada de “dezembrite” ou “síndrome de fim de ano”, a tristeza potencializada por pressão autoimposta de se sentir feliz, realizado e com planos renovados, além de afetar a mente e o corpo, pode provocar o que a psicologia chama de depressão episódica. É um transtorno com sintomas parecidos com o da depressão clássica, como tristeza, perda de interesse em atividades que antes eram agradáveis, alterações no sono, pensamentos repetitivos e perda de energia, mas que somem após algumas semanas, permitindo a volta a um temperamento normal.
– Felizmente, a depressão episódica é pontual. Se dá nesse período em que as pessoas fazem um balanço, vindo com um verdadeiro batalhão de críticas contra si mesmas, o que só faz aumentar a angústia. É muito importante não se deixar levar por estas emoções, compreendendo, através de uma tomada de consciência, que não somos capazes de dar conta de tudo, e que muitas coisas não dão certo porque fogem do nosso controle. Mesmo que seja passageira, essa tristeza não pode ser banalizada. A pessoa precisa ser transparente consigo mesma, identificar o que está provocando desconforto e, se necessário, pedir ajuda – pontua Cassiane.
MENOS RITUAIS, MAIS LEVEZA
“Eu já percorri as vitrines, nenhuma
loja eu perdi. Mas do que adianta parar, quando não há ninguém na sua lista
Você saberá como estou me sentindo, quando você ama e você perde
Eu acho que tenho a tristeza natalina”
Autor do livro A Arte de ser infeliz: desarmando armadilhas emocionais (Citadel, 2020, 256pgs.), o médico psiquiatra porto-alegrense Nélio Tombini alerta para o que considera um grande “circo” feito principalmente pela publicidade pela mídia, mas também pelas pessoas nas redes sociais, ao exagerar uma performance de felicidade que é fictícia.
– É como o palhaço que se apresenta no palco para fazer todo mundo rir e depois vai chorar suas dificuldades no camarim, como qualquer um – compara.
Tombini, que já publicou um vídeo em seu canal no YouTube a respeito do sofrimento no Natal, considera que as pessoas erram ao ir para a data como se fossem para um acerto de contas com o próprio passado, ou com pessoas em quem depositamos expectativas que não foram correspondidas. E sugere que, ao invés de trocar presentes, o Natal deveria ser uma oportunidade para presentear a si mesmo e aos outros com palavras gentis e acolhedoras:
– Transformar pensamentos em palavras e ações é a maior potência do ser humano. O sujeito que consegue ser menos guiado pelas emoções e pensar melhor sobre o que está se passando com ele e com os outros briga menos, se irrita menos, é mais cuidadoso, ouve melhor. Eu, particularmente, só dou presente de Natal para crianças. Com a minha família, estimulo que se presenteie com palavras. Quem quer dizer alguma coisa? Fala um pouco do que sente, do que pensa a respeito de si ou do outro, seja um elogio ou um mesmo um aborrecimento. Fale de três a cinco minutos e terá dado e recebido um bom presente de Natal.
O psiquiatra aponta também para a necessidade de que a vida seja leve, algo que a ritualização excessiva de datas como o Natal e a virada de ano atrapalham ao acarretar uma pressão maior por disponibilidade para os festejos:
–A gente precisa tirar o peso dessas situações ritualísticas simbólicas. Imagina que bacana, uma família em que a pessoa liga dizendo que não vai no Natal porque não está se sentindo à vontade, e ela é aceita? A vida fica mais leve. Se o Natal vai ser de sexta para sábado, mas tu não podes, então liga, manda uma mensagem, ou vai uns dias antes, leva um vinho, dá um abraço, diz que a pessoa é importante pra ti. Não faz um grande esforço. Temos que tirar o peso dessas situações ritualísticas simbólicas. A vida já é complicada, a gente adoece, morre... não é pra amador. Não precisamos torná-la ainda mais pesada por causa dos rituais.
O melhor presente é o afeto
“Quando alguém quer você, quando alguém precisa de você
O Natal é pura alegria
Mas, amigos, quando você está sozinho, você verá que é só uma coisa
Para meninas e meninos”
Na última quinta-feira, a psicóloga caxiense Patricia Luiza Prigol realizou uma live em seu perfil no Instagram, a fim de discutir com pacientes e com o público a respeito das angústias de fim de ano. Com o título Acalma o coração: como lidar com as angústias geradas pelo Natal e virada de ano, Patrícia explicou que há uma diferença entre os sentimentos mais comuns experimentados no Natal e no Ano-Novo.
– No Natal experimentamos um momento de maior introspecção. Mesmo que a gente nem observe, alguns conteúdos vão sendo mobilizados internamente, por ser um período em que a tradição traz a celebração do nascimento, da vida, e nos faz voltar a um passado de reuniões familiares, de pessoas que não estão mais aqui, entre outras coisas que vão sendo mexidas. O Ano-Novo, por sua vez, é o momento em que a gente faz uma retrospectiva, um balanço de metas que muitas vezes não consegue atingir. Somando a isso uma pressão que vem da obrigatoriedade externa de estar feliz e confraternizando, de ser aquela família que só existe na propaganda de margarina, é comum que isso gere angústia, ainda mais num momento em que tantos de nós já estamos sobrecarregados de demandas – analisa Patricia, que segue a corrente da psicologia humanista.
Outro assunto abordado no bate-papo foi sobre a tradição de troca de presentes, como algo que também acaba por gerar uma pressão entre aqueles que muitas vezes não podem presentear as pessoas queridas com algo caro ou sofisticado. A psicóloga sugere que o verdadeiro presente é aquele que faz a pessoa se sentir valorizada enquanto ser humano.
– Não é preciso dar um presente caro. Tem bem mais valor um presente simples, mas que faça a pessoa se sentir notada, que tu lembraste dela e que se importa. Pode ser algo feito com as próprias mãos, até um cartão escrito de próprio punho, mas que transborde afeto. Esse é o presente que ela vai guardar e lembrar pra sempre.
Próximo ao fim do encontro virtual, Patricia chamou a atenção para o fato de que a época dos festejos de final de ano normalmente fazem aumentar os índices de tentativas de suicídio. Por isso, é ainda mais necessário estar atento e presente quando alguém que gostamos estiver em sofrimento.
– Não devemos hesitar em oferecer ajuda, até mesmo no caso de fazer algo que a pessoa não consiga fazer por si mesma, como marcar uma consulta com um profissional e até ir junto, se for o caso. Não podemos perder o olhar para quem está perto da gente.