Mais de 30 anos se passaram desde que a homossexualidade deixou de ser considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1990. Desde 2011, a união estável entre pessoas do mesmo sexo é reconhecida no Brasil, país que também validou o casamento homoafetivo em 2013. Direitos têm sido conquistados, espaços estão sendo ocupados, mas sentir orgulho com liberdade e, sobretudo, segurança, está longe de ser a realidade de brasileiros que se identificam como pessoa LGBT+. Somente em 2020, foram registrados 237 mortes de pessoas vítimas da homotransfobia. O levantamento é do Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil, que vem sendo realizado há 41 anos pelo Grupo Gay da Bahia (GGB).
Conforme o relatório , no ano passado as travestis e trans representaram 70% da estatística, sendo a primeira vez que atingem o topo da lista. Antes, este lugar era ocupado pelos gays, que agora representam 22% das mortes (confira no quadro abaixo). Em alusão ao Dia Internacional do Orgulho LGBT+, lembrado nesta segunda-feira (28), o mês de junho acaba sendo voltado a ações que promovam o direito à diversidade, com a renovação da luta pela igualdade em todos os âmbitos e pela garantia de que todas as pessoas possam sentir orgulho de serem quem são sem que isso as coloque em situação de vulnerabilidade.
Para a socióloga Aline Passuelo de Oliveira, a violência contra esse grupo faz parte de um entendimento errado sobre o significado da liberdade de expressão, já que determinados setores da sociedade fazem o uso desse conceito para justificarem ataques de ódio contra essa população mais vulnerável:
— A liberdade de expressão não combina com discurso de ódio, com esse discurso que quer destruir, quer aniquilar o outro; e quando eu falo destruir e aniquilar, eu estou falando não só no sentido simbólico, mas principalmente no sentido bastante objetivo. O Brasil é um país que ainda mata muito as populações LGBT+. Então, de fato, há uma grande confusão e uma justificativa para que qualquer ideologia autoritária seja validada a partir de um viés da liberdade de expressão, mas que de fato não é. Tudo aquilo que acaba infringindo qualquer tipo de violência, sofrimento ou discriminação para o outro não pode ser justificado a partir desse princípio, que é um princípio altamente democrático.
A professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS) pontua ainda que os últimos anos marcam um retrocesso em conquistas que levaram décadas para avançarem e que, agora, estão em risco também no ataque à subjetividade:
— Depois de décadas de conquistas para vários grupos minoritários, uma conquista de representatividade, de mostrarem o que são e quem são, a gente vê, infelizmente, o recrudescimento de discursos muitos conservadores que tentam excluir esses grupos. Não é só uma exclusão que visa aniquilar os direitos básicos dessas populações, mas principalmente uma exclusão do espaço público, que é uma ideia ainda muito antiga, conservadora e autoritária, altamente violenta, aquela ideia de que “bom, tu pode ser aquilo que tu quiseres, desde que não esteja à mostra”.
Desde maio deste ano, Caxias do Sul conta com a primeira casa de acolhimento LGBT+ do Rio Grande do Sul, em uma iniciativa da ONG Construindo Igualdade. Como o próprio nome define, o local tem a finalidade de acolher pessoas que se veem excluídas e, consequentemente, marginalizadas em uma sociedade que ainda oprime as diferenças.
— Um dos grandes problemas é a exclusão familiar, porque a partir do momento que uma família expulsa um jovem de casa, o coloca em um contexto de exclusão social. E isso impacta não apenas a vida dele, mas de toda a sociedade. A família brasileira precisa aprender a nos escutar. Orgulho, pra mim, seria poder dizer: a minha família me aceita e me entende como ser humano — afirma Cleonice Araújo, a Cleo, 42 anos, mulher trans que coordena a Casa de Acolhimento LGBT+ de Caxias do Sul.
Com recursos financeiros e doações provenientes de apoiadores, ela conseguiu tornar realidade um projeto que tentava implantar na cidade há, pelo menos, oito anos. Desde que se mudou com o marido para a Serra gaúcha, há 18 anos, articula ações que colaborem para o desenvolvimento da cidade, sendo, inclusive, nas Eleições Municipais 2020, a primeira mulher trans candidata a vereadora e suplente eleita em Caxias do Sul.
— Essa cidade que quero ajudar a construir, e não adianta só eu querer. Se todo mundo se unir, Caxias vai longe — projeta.
Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil
- 237 mortes - 224 homicídios (94,5%) e 13 suicídios (5,5%)
- 161 travestis e trans (70%)
- 51 gays (22%)
- 10 lésbicas (5%)
- 3 homens trans (1%)
- 3 bissexuais (1%)
- 2 heterossexuais confundidos com gays (0,4%)
Fonte: Dados de 2020 do Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil — GGB
Como a luta começou
Cleo tinha apenas 11 anos de idade quando foi expulsa de casa pelos pais. Sem rumo pelas ruas de Rio Branco, no Mato Grosso, foi amparada por um casal que a levou para uma fazenda, no interior do município. O acolhimento que aquela criança tanto necessitava foi apenas um disfarce para a real intenção de trancá-la em um quarto e explorá-la sexualmente, lucrando com garimpeiros abusadores e pedófilos. Outras oito crianças, também presas em quartos individuais, vivenciavam a mesma situação.
— Eles não nos deixavam sair do quarto pra nada, abriam só para que os clientes pudessem entrar. Eram 10 a 15 homens por dia — relata Cleo.
Foram quatro anos de abuso até o dia em que ela conseguiu escapar do cativeiro. No pescoço, ainda carrega a cicatriz de uma facada que tomou ao ser capturada. Às vezes, quando fecha os olhos, volta a sentir o sangue jorrando pelo corte tal qual naquele momento em que, quase desacordada, conseguiu ter forças para saltar no rio, novamente em fuga. Também permanece intacta na memória dela a sensação dos galhos batendo pelo corpo desfalecido que boiou correnteza abaixo; assim como a sensação das mordidas de insetos durante a noite que passou na mata.
No dia seguinte, a denúncia desmantelou o esquema exploratório, culminando na libertação de todas as crianças, meninos e meninas, que também eram abusados naquele lugar. Cleo estava com 15 anos e foi devolvida aos pais pela Justiça. Eles a colocaram para viver em uma casa, sozinha. Desta vez, uma congregação da Igreja Católica foi quem a acolheu, mas também não aceitava que aquela adolescente, nascida com um corpo biologicamente masculino, tivesse a necessidade de habitar em um corpo feminino. Pouco antes de fazer a transição, aos 17 anos, Cleo decidiu deixar o grupo.
Ela se viu excluída pelo fato de assumir o gênero com o qual sempre se identificou. Como mulher trans, não conseguia trabalho e o acolhimento, mais uma vez, lhe foi dado: agora pela prostituição, como atividade para garantia do próprio sustento. Enfrentando todas as barreiras e preconceitos, trabalhava à noite e estudava durante o dia até que conseguiu abrir um salão de beleza, em Santa Catarina, estado para onde havia se mudado.
Depois de casar, Caxias do Sul foi a cidade escolhida para mais um recomeço. Este marcado pela vontade de garantir que pessoas LGBT+ excluídas pela família tenham acesso ao acolhimento seguro e a oportunidades, por meio de cursos e acompanhamentos que possam dar perspectivas de futuro melhor, como no caso de Camilly Catharina, 35, uma das pessoas acolhidas pelo projeto da ONG, que atende no bairro Medianeira. Sem ter concluído o Ensino Fundamental, ela nunca teve um emprego formal. A morte da avó seguida pela da mãe, há cerca de quatro anos, marcou um período de instabilidade:
— Me senti sozinha porque os meus outros familiares não são tão próximos. Comecei a ter dificuldades financeiras e vi aqui a oportunidade de finalizar meus estudos e me especializar em alguma profissão. A casa é uma esperança de dias melhores — afirma.
"Liberdade de ser quem eu sou"
Issac*, 20, não pensou duas vezes e atravessou o Rio Grande do Sul logo depois de saber, por uma notícia publicada no site do Pioneiro em gzh.com.br, que Caxias do Sul teria uma Casa de Acolhimento para LGBTs. Ele já havia entendido que na cidade de pouco mais de 30 mil habitantes onde morava com a família, no Noroeste do Estado, as oportunidades seriam escassas.
– Gay e negro acaba sofrendo preconceito por toda a vida e muitos amigos meus já haviam se mudado pelo fato da cidade ser pequena e muito conservadora. Se eu tivesse ficado lá, certamente ainda estaria procurando emprego – relata o jovem acolhido pelo espaço caxiense, que agora estuda para conseguir uma bolsa e retomar a graduação que havia iniciado na cidade natal.
Criado em uma família evangélica, Isaac diz que nunca pretendeu falar sobre sexualidade com seus parentes porque, na opinião dele, não faz sentido, já que pessoas heterossexuais também não precisam “assumir” sua orientação. Desde pequeno, porém, diz ter sido comparado com o irmão mais velho, algo que causava desconforto.
– Ele gostava de jogar bola e eu queria aprender a cozinhar. Quando ficaram sabendo que eu era gay, me respeitaram, mas senti que ficar lá seria um retrocesso, porque aqui tenho mais oportunidades e a liberdade de ser quem eu sou – conta Isaac.
Ainda que seja o acolhido mais jovem da casa, Isaac demonstra a maturidade de quem constantemente buscou ajudar a família, que sempre esteve em situação de vulnerabilidade. Olhando para o futuro, ele consegue projetar a formatura, o sustento, a moradia e a possibilidade de retribuir à Casa de Acolhimento caxiense, onde reconhece como sua segunda família, todo o amparo recebido.
Em uma fala mansa, o menino também expressa a visão que formou ao longo de apenas duas décadas vividas até então:
– Existe uma “síndrome da bolha”, por vezes dentro da própria comunidade, que faz com que muitas pessoas acreditem que não existe mais preconceito, que isso é coisa do passado. Mas, se parar para observar, é muito mais presente do que a gente esperaria – conclui.
*O nome verdadeiro de Isaac foi ocultado nesta reportagem como forma de preservar o entrevistado, que preferiu não detalhar aos familiares para onde se mudou e vive atualmente.
Expressão em meio ao conservadorismo
Ocupar espaços é simbólico. Às vezes, é o próprio corpo que precisa de um lugar para estar acomodado — como no caso de quem é expulso de casa. Mas há outras situações em que a acolhida mais necessária é a subjetiva. A rejeição ao público LGBT+ passa pela falta de possibilidade de se expressar. Afinal, quem já não ouviu aquela frase infeliz, porém clássica: “tudo bem ser ‘assim’, mas não precisa ficar mostrando”.
Em uma sociedade conservadora como a de Caxias do Sul, em que talvez quem está fora dos grupos menos vulneráveis sequer perceba, nos anos de pandemia, que poderiam ser um motivo a mais para fazer se esconderem aqueles a quem não se quer ver, surge um movimento por meio de um grupo de conversas online. Reúnem-se nesse espaço virtual integrantes da sigla e, a partir de então, desenha-se a criação de uma exposição de arte. É a AnarcoQueer, que começou em maio e segue até meados de julho.
No meio virtual, para driblar a própria pandemia que exige distanciamento, ocorreu uma parte das apresentações e exibições. Já a exposição física foi para um lugar com nome, mais uma vez, simbólico: Reffugio. É um bar no bairro São Pelegrino, que já tem uma histórica ligação com a causa LGBT+. A proprietária do espaço, Bruna Turmina, 32, conta que desde criança se identifica como lésbica e que, depois de passar uma temporada no Nordeste, há 13 anos voltou para Caxias, onde sentiu o conservadorismo maior. Já mais segura de si, decidiu que “as outras pessoas é que teriam de lidar com isso”:
— Fui conhecendo pessoas com essa mesma identificação e foi crescendo uma rede. Quando vê, a gente conseguiu unir forças e está conseguindo fazer um movimento diferente em Caxias, para ter mais visibilidade para nós. As pessoas até perguntam: “tem o orgulho LGBT+, por que não tem o orgulho hetero?” É meio pesado quando falam isso, porque é difícil entender que, para nos aceitarem, a gente teve que passar por muitas coisas. O movimento vem desde muitas décadas atrás, agora é que parece estar normalizado, mas muita gente já morreu para a gente poder falar hoje.
Poucos espaços
As batalhas para o público LGBT+ continuam em um movimento de avanços e retrocessos. Integrante do grupo que resultou na AnarcoQueer, Rafael Dambros, 37, aponta que os temas que circundam a sigla estão fora do radar de prioridades no debate cultural em Caxias do Sul. Segundo ele, a escolha do Reffugio como opção para a exposição foi simples, devido ao próprio envolvimento da Bruna com a causa. Por outro lado, o artista plástico reconhece que ainda existem barreiras para a ocupação de outras áreas:
— Eu sinto que em Caxias os espaços públicos têm uma preocupação, não diria totalmente visível, mas no fundo tu sentes que têm essa preocupação de não ser ofensivo para determinados grupos. Isso acaba excluindo um pouco muito das coisas que a gente tem a falar. Eu sinto um pouco mais de abertura no (Centro Cultural) Ordovás, que tem na Unidade de Artes Visuais a Mona Carvalho, que é muito parceira das artes em geral, tem uma luta contra a censura muito forte. Mas existe, em outros espaços, um pouco de receio. Nós não temos aqui em Caxias nenhum tipo de política pública voltada para essa sigla. Então, em alguns casos a gente se sente um pouco desamparado.
Para Márcie Vieira, 36, outra artista que participa da AnarcoQueer, as barreiras para a ocupação dos espaços são mais notáveis e pouco saudáveis. Mulher transgênero e travesti, ela começou a estudar teatro aos 11 anos e, por volta dos 18, começou a trabalhar profissionalmente nesta área. Próximo aos 25 anos, conseguiu se interligar à identidade de gênero que sabia pertencer desde a infância, mas não nomear. Ainda demorou outros cinco anos para conseguir romper barreiras e decidir que “o importante é ser feliz”. Mesmo assim, tenta se manter afastada de locais onde é tratada com interesse espalhafatoso, como se fosse “um animal de zoológico”:
— Eu não tenho interesse em ocupar esses espaços neste momento. Acho que se não existe um espaço institucional ou municipal para acolher minha arte, eu crio esse espaço, seja no ambiente virtual ou em alguma periferia. Eu sei que é importante ocupar todos os espaços. Mas tem uma coisa que quando tu é uma pessoa trans e travesti, só o fato de tu entrar em determinados espaços, não é tua arte que pode ser julgada ou não, já tem aquele julgamento antes, por eu ser quem eu sou, por eu me expressar e me apresentar, ter minha identidade. Então, pensando em manter minha saúde psicológica, tem coisas que eu evito.
Mais união e outros movimentos
O entendimento dos próprios integrantes da AnarcoQueer parece convergir para a necessidade de uma união maior dentro até mesmo do próprio movimento. Há quem descreva uma certa competitividade dentro da comunidade e outros advogam por mais conexão.
Três colagens levadas por Julia Webber, 27, na exposição abordam justamente o que ela chama de viver em tanques de isolamento. A artista diz que pretendia efetivamente questionar o que ela chama de “egoativismo”. Julia entende que não é possível pensar no movimento LGBT+ excluindo-se outros, como a negritude, o feminismo e a causa animal.
— O que gostaria de frisar é sobre entender de uma maneira ampla sobre o que se tratam esses movimentos. Se a gente entender que é sobre cada um ter o direito de se expressar como indivíduo, de forma que não cause nenhum dolo, a gente entende que são movimentos relacionados, que todos têm o mesmo objetivo, que é ir contra essa força que oprime.
A educação, aliada à consolidação de políticas públicas, é o que João Luís Weber, professor dos cursos de Psicologia e Direito no Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), entende como sendo o caminho para uma transformação das práticas e relações sociais, para que, segundo ele, a diversidade possa ser entendida como algo a ser valorizado.
Desde outubro de 2020, ele coordena o projeto de extensão universitária multidisciplinar Diversidade em Foco, do qual também é idealizador. Trata-se de uma iniciativa na qual são promovidos workshops, palestras e capacitações oferecidos a empresas e serviços de atendimento.
— Nosso intuito é dialogar sobre temáticas da diversidade que envolvem não apenas a questão de orientação sexual, mas também racial, migratória, de pessoas com deficiência e tudo o aquilo que foge da norma, construindo novas práticas de respeito, tolerância e inclusão — afirma Weber.
De acordo com ele, o preconceito se forma a partir da influência cultural e educacional recebida pelo sujeito, tratando-se também de algo que passa de geração em geração e que pode levar tempo para ser transformado.
— Não conseguiremos mudar isso do dia para a noite. O Brasil oscila em um novo ciclo de conservadorismo que justifica seu ódio com argumentos até mesmo bíblicos. Com certeza, se um pai educar um filho sem preconceitos, ele também será um adulto sem preconceitos; a escola precisa falar sobre respeito e pluralidade; a mídia abordar estes indivíduos com um outro olhar que não seja estigmatizado e nem caricato... Não temos como vencer de forma isolada, é preciso atuar em várias frentes.