Quem passa boa parte da vida escrevendo, como eu, acaba desenvolvendo uma série de habilidades ao comunicar-se por escrito. Sim, texto é exercício e é natural que o processo seja melhorado com a prática do passar dos anos. Acho curiosíssimo ler matérias antigas minhas e tentar lembrar quem eu era exatamente naquele momento. Algumas me surpreendem tanto que quase não me reconheço ali — acho isso fantástico. Há quem diga que a memória é uma invenção, que estamos sempre reelaborando os acontecimentos e recriando-os à medida em que são evocados... Escrever sobre eles os eternizam e, em casos extremos, eles podem ser rasgados ou queimados.
Como as lembranças das redes sociais, de percepções colocadas para fora em um determinado momento e que, dois anos depois, já não fazem mais sentido... Estou em processo de mudança (física, não só interior) e tenho encontrado uma série de cartas e objetos que me pertencem, mas agora funcionam como uma espécie de portal e me transportam a outra dimensão. Uma série de cartas apaixonadas que recebi e as lendo agora, são feitas mais para quem o escreveu entender a si mesmo do que para mim. O distanciamento me ajudou a ter clareza sobre a importância desse processo de escrita. Tirar as ideias e emoções de dentro e sem filtro são um desafio e um bálsamo — tal qual quebrar vasos e espelhos nos filmes de amor não correspondido.
É óbvio que somos mutantes e que nossos interesses transformam-se, mas isso nem sempre é tão perceptível. Impressões subjetivas sobre nós mesmos ganham outra dimensão quando há algo de concreto nelas. Pode ser um texto no papel, uma carta, um bilhete ou até uma tatuagem. Quem nunca viu alguém com o símbolo do infinito no corpo e a pessoa cultivava a efemeridade nas relações? Ou os adeptos do , que deixam os momentos de fruição sempre para depois? Tenho um amigo que exibe caveiras com correntes na panturrilha, que já não se pareciam com ele há 20 anos, quando nos conhecemos. E quantas declarações de amor por alguém não foram cobertas por flores ou pássaros? Nem por isso elas são menos verdadeiras, só mostram que somos — como bem disse Umberto Eco — obras abertas.
Até me meti num curso de poesia cheio de poetas talentosos, sem nunca ter escrito nenhum verso. Estou curiosa para ver o que pode sair e, na pior das hipóteses, intensificar um olhar poético do cotidiano, já que me recuso à banalizá-lo. Concordo com Voltaire, quando diz que “a escrita é a pintura da voz”, seja lá como for.
Acredito que palavra escrita tem uma força diferente, um quê de eternidade. Talvez por isso tenham surgido muitos cursos por aí que permitem uma espécie de cura pela escrita, a sucessão de frases como um processo verdadeiramente terapêutico. Conversando com uma amiga sobre um acontecimento horrível pelo qual passou na infância, explicou-me que estava cicatrizado, já, pois conseguia até escrever sobre ele. “Não sei como as pessoas que não escrevem dão conta de seus problemas”, me disse. Também não sei.