Voar já não é privilégio dos pássaros desde que o mítico Dédalo inventou as asas artificiais que o livraram da prisão do labirinto. Voar, inventar e libertar são verbos aquarianos. O signo dos espaços abertos e dos altos céus também simboliza o infinito mundo das ideias pensado por Platão. Agora imagine um bar que nascesse sob o signo de Aquário. Imagine que no céu do instante inaugural desse bar houvesse um encontro raro entre os dois regentes de Aquário, Saturno e Urano, com mais Netuno. E imagine que, em sintonia plena com os sinais cósmicos, tal bar fosse batizado de Voo Livre. Agora apenas constate a força de certos eventos quando deixam o mundo das ideias para virarem história.
Foi por ter sido um marco histórico na vida cultural de Caxias do Sul que o bar Voo Livre ganhou um documentário recém-lançado. Naquele ano de 1989 em que o bar abriu-se em pista para voos de toda sorte, havia um modelo de mundo se quebrando. Velhas estruturas soçobravam ao sabor de ventos libertários – vide a queda do Muro de Berlim no mesmo ano. A tripla conjunção planetária em Capricórnio deixava claro o emergir de uma nova geopolítica. No Brasil, seria o ano em que, enfim, o povo votaria para presidente após longo jejum democrático. E havia uma nova Constituição a prometer inéditos ideais de cidadania e dignidade ao país. O fim da tal década perdida era como uma esquina a iluminar outros mundos possíveis.
Conheci o Voo Livre em maio de 1992, quando estive em Caxias pela primeira vez. Eu era estudante de Jornalismo em Salvador e, nas férias da faculdade, viera visitar amigos jornalistas. Já estudava astrologia profundamente, mas não imaginava que estivesse também engatado na força transformadora daquele contexto cósmico. Em novembro do mesmo ano, retornei a Caxias para passar mais um tempo – e lá se vão quase 30 anos! Não seria exagero dizer que as experiências no Voo Livre contribuíram para minha liga com a cidade. Agora, na distância do tempo, posso parafrasear Caetano e dizer que o Voo Livre era onde Caxias do Sul era mais baiana.
O astral algo riponga da decoração, com os tecidos no teto, dando um ar de tenda, me soavam familiares. Entre muitos outros bares que bombavam na cidade à época (uma era dourada na boêmia local, sem dúvida), o Voo dispensava certos filtros de admissão que me causaram estranheza – cheguei a ser barrado num lugar por estar usando tênis e não sapato social. Já no Voo, tudo indicava a descontração e o ecletismo de um bom boteco, sem perder a classe. A fauna local variadíssima dava pistas do espectro mais alternativo da cidade. No melhor espírito aquariano, o Voo congregava todas as tribos de boas: intelectuais, militantes, esotéricos, malucos beleza, artistas, gays, lésbicas, boêmios, amantes da música ao vivo, profissionais liberais, corações flechados ou por flechar – enfim, gente disposta a voar livre, nas ideias e nas promessas de vida.
Mas o tempo passou, o céu mudou. O Voo fechou em 1994. Sob os ares globalizados do neoliberalismo e das novas relações sociais que a internet iria inventar, já não havia espaço para aqueles sonhos coletivos. Endurecemos. Agora, quando Urano e Saturno se tensionam no céu, é sincrônico voltarmos a falar de um bar surgido na conjunção desses astros. Porque precisamos sair dos atuais labirintos e reinventar o respeito, a boa convivência, a esperança, algum sonho feliz de cidade. Precisamos recriar um futuro em que o amor possa voltar a voar. Livre, como deve ser.