Aqueles acordes de harpa que costumam introduzir tradicionais canções natalinas: tem quem goste e tem quem já revire os olhos de tédio. São a trilha sonora obrigatória do fervo típico da temporada mais feliz para o comércio. E talvez seja pelo foco mais mercantil que espiritual do Natal que muita gente já se incomode com os sinais da festividade. Afinal, o que era para ser a celebração da esperança e dos encontros também revela desigualdades e solidões extremas. E bastam três ou quatro notas musicais para nos levar a um céu ou a um inferno particulares.
É curioso como o lado sombrio do Natal está presente na mais famosa canção temática do Brasil, Boas Festas, de Assis Valente. Todo mundo conhece os versos iniciais: “Anoiteceu / O sino gemeu / E a gente ficou / Feliz a rezar / Papai Noel / Vê se você tem / A felicidade / Pra você me dar”. Letra e música se casam à perfeição na sugestão do clima religioso de bênçãos e anseios.
Mas eis que a percepção da realidade da vida confronta a ilusão do sonho: “Eu pensei que todo mundo / Fosse filho de Papai Noel / Bem assim felicidade / Eu pensei que fosse uma / Brincadeira de papel”. Até a conclusão dramática: “Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu Papai Noel não vem / Com certeza já morreu / Ou então felicidade / É brinquedo que não tem”.
Pode haver canção mais triste? Quase oposta ao clima otimista que se associa ao Natal. Bah, Papai Noel deve ter morrido! E não há felicidade! Por que será que tal canção, composta em 1932 e lançada no Natal do ano seguinte, se tornou um sucesso tão grande? Logo a primeira composição brasileira com essa temática já avisa que nem todo mundo é filho de Papai Noel...
Quando compôs Boas Festas, o baiano Assis Valente tinha 24 anos e morava no Rio de Janeiro há quatro. Contou, depois, que era dezembro e estava muito triste e solitário, quando um quadro na parede do quarto da pensão o inspirou. Na imagem, talvez de uma folhinha, uma menina tristonha olhava um par de sapatos sobre uma mesa. A música teria vindo num jorro, quem sabe fruto do denso estado emocional de Assis e de possíveis conexões com memórias da infância sofrida.
Pesquisadores da vida e da obra do artista apontam em sua trajetória de apenas 47 anos — encerrada pelo suicídio em 1958 — periódicas crises de depressão. Assis era um sensível pisciano, nascido a 19 de março de 1911, sob uma conjunção do Sol com o tradutor Mercúrio. Transitar entre os mundos do êxtase e da melancolia devia ser comum para quem sentia tudo de todas as maneiras. O estudioso Eduardo Carli de Moares escreveu: “Assis Valente consegue expressar, como todo grande artista, a mescla entre o positivo e o negativo, o bem e o mal, a delícia e desgraça, de que a vida humana é feita”.
Embora talentoso no desenho e na composição musical, Assis não conseguia viver de sua arte. Ganhava a vida fazendo próteses dentárias — devolvendo literalmente o sorriso a quem o perdeu! E conforme Moraes, “ainda que tenha vivido com dificuldade para pagar os aluguéis e saldar as dívidas, soube lidar criativamente com a profusão de contradições que o habitavam e soube expressá-las musicalmente”.
Fruto bastardo do relacionamento entre um branco casado e uma negra, o mulato Assis conhecia bem o não-lugar social partilhado com grande parte da população brasileira. Em 1941, ele lançou um dos seus maiores êxitos, Brasil Pandeiro, um hino à mestiça cultura nacional. Ali anunciava: “Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”.
Ah, meu Brasil, essa hora ainda está por se fazer, sempre como uma promessa que a cada Natal se renova entre nossas mais alentadas esperanças. Sem Papai Noel que nos traga uma felicidade de encomenda — até porque ele mora num shopping, sem acesso a todos —, a velha mas atual canção natalina segue soando como um chamado à luta real por Boas Festas para todos. Todos mesmo.