Para crítica e público, a contenção ao interpretar Eunice Paiva foi o mais surpreendente tom adotado pela atriz Fernanda Torres no filme Ainda Estou Aqui. A história da mulher que tem o marido sequestrado e morto pela ditadura militar e precisa amparar sozinha seus cinco filhos tinha tudo para comover pela natural exposição dos limites do humano. Como não chorar, gritar, lastimar-se? O diretor Walter Salles, no entanto, foi por outro caminho. E o que não é mostrado — impotência, desamparo, revolta — foi precisamente sugerido pela refinada e concisa atuação de Fernanda Torres.
Convenhamos, não é um trabalho para qualquer atriz, e o prêmio Globo de Ouro fez justiça a esse mérito. Deve ter havido, no roteiro, cenas em que Eunice, ainda que sozinha, revelasse mais explicitamente suas fragilidades. Mas, segundo Fernanda em entrevistas, Salles cortou tais trechos na montagem do filme. Seria fácil tocar o espectador por qualquer emoção legítima da personagem. Que coração de pedra não seria empático ao drama daquela mãe? A genial sacada do diretor foi nos nocautear somente com os olhos da sua atriz. Quando vemos o que Eunice vê em seu silêncio e reserva, então desvelamos seu íntimo como numa epifania.
Com isso, Salles quis ser fiel à Eunice real, como aparece no livro homônimo do filho dela, Marcelo Rubens Paiva. Li o livro logo que saiu, em 2015. Embora já conhecesse a saga da família Paiva de muitas outras fontes, fui surpreendido pela grandeza de Eunice, essa mãe coragem que jamais se vitimou embora tenha tido mil motivos para tal. Maria Lucrécia Eunice Facciola Paiva era uma Maria como as da canção do escorpiano Milton Nascimento: “a dose mais forte e lenta de uma gente que ri quando deve chorar”. Sim, ela trazia na pele a marca de tantas brasileiras dotadas da “estranha mania de ter fé na vida”. Não, não havia espaço para lamentações em Eunice.
Após o filme, alguns astrólogos publicaram o mapa dela, nascida a 7 de novembro de 1929. Sol em Escorpião, ascendente em Sagitário e Lua em Capricórnio. Escorpião na construção da própria identidade já traz os temas da resistência e da resiliência: viver pressupõe aprender a renascer, a recomeçar. A Lua em Capricórnio — signo regido pelo austero Saturno —, indica uma postura emocional reservada e realista, sem lugar para inseguranças e dependências. E a Lua ainda estava oposta a Plutão, ampliando sua força psíquica e sua capacidade regenerativa.
A contenção se reafirma no mapa, como característica comum a Escorpião e Capricórnio, e Walter Salles soube levar ao filme essa faceta de Eunice até mesmo como método de direção. O signo ascendente em Sagitário indica o caminho dela na área da justiça, com ênfase na luta pelos direitos indígenas, e na busca incessante da verdade acerca do desaparecimento forçado de Rubens Paiva, seu marido. Tudo sem perder jamais a alegria e o propósito, pois “é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre”.
Com o sucesso do filme e os prêmios, o Brasil e o mundo estão conhecendo Eunice Paiva. E percebendo que a história dela, mais ainda neste especial momento histórico, transcende a saga de uma mulher de fibra que teve que enfrentar desafios terríveis. Agora vertida em símbolo pela magia da arte, Eunice revive em cada mente que se abre para a suprema dignidade humana, em cada emoção a revelar que ainda há uma alma sob camadas de ódio, em cada anseio de luta por um país de respeito, justiça e paz.
O impacto do filme mundo afora, a renovada ênfase ao livro do Marcelo Rubens Paiva e os debates que ambos têm sugerido atestam a força da arte na transformação social. E é por isso que a arte e os artistas ameaçam sempre os tiranos da vez. Pois então, que ladrem os cães da estupidez – é o que sabem fazer melhor. Enquanto isso, ainda que contida, a arte nos acalenta, como a dizer: sempre estarei por aqui.