Puxa vida, dona Morte, isso é coisa que se faça? Nem bem a cultura de Caxias do Sul enxugou as lágrimas pela perda do Cláudio Troian, vem a senhora de novo e leva o José Clemente Pozenato. Sabemos que piedade nunca foi um traço seu, ó dama implacável, mas custava ser menos afoita em sua sanha de minar as humanas promessas de permanência?
Agora nos diga, dona Morte: como vamos ficar sem a presença norteadora do escritor que tanto fez pela identidade desse povo que habita as encostas basálticas da Serra gaúcha? Ou é assim que a senhora nos quer: sem memória, sem história, sem sonho nem futuro – meio mortos, enfim?
Ah, a morte é essa barra mesmo, sempre, e a gente jamais se prepara direito para ela. O tempo consola, nos dizem, à guisa já de algum alento. Mas quando se é artista, isso comprovamos, a boa obra legada tangencia o eterno. Sim, a arte também pode ser vista como uma engenhosa trapaça humana contra a morte.
O próprio artesão das letras Pozenato traduziu obras dos poetas italianos Dante Alighieri, morto há 803 anos, e Petrarca, finado há 650 anos, dando novos laivos de imortalidade aos dois bardos. Assim sendo, quem ousaria dizer que a vida de Dante se esgotou nos 56 anos de existência encarnada, e a de Petrarca nos 70 vividos? Ou a de Pozenato nos 86?
Embora eu sinta tristeza, não quero aqui prantear o Pozenato – seria dar à morte um gostinho de vitória. Melhor será exaltar sua arte de divino trapaceiro a injetar vida e movimento ao que realmente importa. Geminiano de 22 de maio, era ele regido por Mercúrio, o Hermes dos gregos, o deus de asas nos pés e mente brilhante, encarregado de conectar mundos e nomear todas as coisas.
Claro que nunca cabe numa única faceta um espírito mercuriano que voa leve e livre nas asas da dialética. E foi assim que o homem de palavras se expressou no ensaio científico e na ficção, na poesia autoral e na tradução, no ensino e na pesquisa, na gestão acadêmica e na cultural.
Mercúrio carregava um bastão mágico, o caduceu, que lhe permitia abrir todos os caminhos e portas. O verbo de Pozenato foi um caduceu, chave de sínteses e diferenças que desenharam caminhos a serem partilhados. Sem ele, certamente não estaria no mesmo patamar a noção de identidade cultural que ora define a região de colonização italiana em que habitamos.
Foi ele quem melhor mapeou, e inseriu na ficção nacional, essa cultura amalgamada entre a imigração e a brasilidade, dando-lhe dignidade e visibilidade. Tão perfeitamente traduziu esse mundo regional que o alçou ao patamar universal. Vide o sucesso do romance O Quatrilho, que virou peça, virou ópera, virou filme indicado ao Oscar.
Geminiano como Caxias do Sul, a cidade que o acolheu, ou que ele escolheu, Pozenato teceu num poema magistral talvez a melhor leitura da complexidade cultural da metrópole serrana. Entre sentimentos polarizados de amor e ódio, como é comum entre os caxienses, o poema Canto e Blasfêmia para a Pérola das Colônias atesta também a excelência do próprio poeta.
Veja que imagens: “Como uma cabra montês / és impiedosa / com quem não sabe fazer a vida / com suas mãos feito cascos”. E mais: “tão estreito espaço deixas / a tudo o que não rende / capital e reservas / e é por isso que este canto / tem todo sabor que sabes / de blasfêmia / irada e amorosa”.
Eu sempre me emociono ao ler esse poema tão cheio de camadas de significados históricos e culturais. E para matar a saudade, e traçar a imortalidade do homem que nos inventou na literatura, recomendo com ênfase, além das obras em prosa, também o livro Mapa de Viagem – Poesia Reunida (Educs, 2000).
Lá de cima, junto a Dante e Petrarca, um bonachão Pozenato já deve estar a contar de parreirais e metalurgias, de dialetos e peraus, de uma montanha onde o sonho imigrante um dia se fez real em basalto. Daqui, em coro, apenas agradecemos: muito obrigado, mestre!