Não tenho ideia de para onde me levará o canto do sabiá que escuto enquanto escrevo. Eis um dos baratos da crônica: alguma coisa corriqueira termina por conduzir a imprevisíveis conexões, e o cronista é o primeiro a se surpreender com o destino ou o caminho de suas conjecturas. Assim, à guisa de mola propulsora de mais um voo literário, agarro-me ao nítido gorjear do passarinho a quebrar o cinza de uma tarde de terça-feira. É primavera, estação do acasalamento, e mesmo numa cidade ruidosa como Caxias do Sul, os já urbanizados sabiás liberam o natural impulso de os machos cantarem para atrair as fêmeas. Aliás, começam bem cedo, antes de o Sol nascer.
Não era para ser assim, é claro, esse madrugar canoro que também costuma acordar antes da hora os humanos de sono leve. Minha amiga Alessandra Rech escreveu sobre isso em A Insônia dos Sabiás, livro juvenil que lançou em 2018 e que agora verte em musical em parceria com Gabriel Gravas. Se o canto antecipado do sabiá nos sacode da cama, a culpa é de um entorno caótico.
Diz o livro: “Se os sabiás habitassem um mundo menos acelerado, menos competitivo, menos consumista, certamente estariam com o relógio reguladinho: teriam o sossego necessário para um bom descanso, e só começariam a sua cantoria com os primeiros clarões da manhã”.
Pobres bichinhos que espelham, sem querer, as humanas dissonâncias com a natureza. Vejo-os por aí, em praças e ruas, ciscando o chão feito pombos, igualmente destemidos dos passantes. Costumo observar que eles só voam quando já não podem andar ou correr, como se preguiçosos das próprias asas.
Aves doidinhas, alucinantes e alucinadas, agora cantam fora de hora — quiçá fora de tom — seu cio estressado, sua primavera desvirtuada, nossa vida em comum ansiosa e fora de ordem. Sabiás, sabiás, fujam desses bípedes pensantes que vivem de gastar a vida à toa, à toa...
E cá estou, ó sabiá que ora cantas lá fora, a pensar nesse exílio do que seria teu ninho mais natural, teu mais aberto plano de voo. Quisera uma palmeira nativa onde pudesses cantar — sem a enganosa luz artificial, sem o ruído de ônibus e motocicletas — a ânsia instintiva por outro par de asas.
Ah, sei do meu literal sonho romântico, eu aqui a evocar poetas antigos, nostálgicos, eu e eles, de uma terra idealizada. Sim, exilado sou eu mesmo, meu sabiá, desse outro mundo utópico que, se não houve ainda de fato, é como se tivesse havido, pelo tanto que me enreda em imagens e motivações.
Lá nesse outro mundo, sabiá, ninguém é míope às flores nem surdo aos passarinhos. Aqui andei a falar delas, de ipês e manacás, e agora de sabiás, não como delírio de eterno sonhador, mas como alerta do que é vivo em nossas vias urbanas tão insensíveis. Isso enquanto as notícias sérias davam conta da barbárie sem limites que ronda as disputas políticas.
É minha forma de resistir, ó sabiá: não ceder à desumanização e insistir no mais puro, no natural, naquilo que é real, aqui e agora. Pois flores e pássaros são reais — ilusória mesmo é a ânsia de poder que a tantos seduz e desorienta.
Opa! Flores, sabiás e tensões políticas: já vimos esse filme! Em 1968, entre ditaduras e revoluções, a juventude se revoltou quando o júri do Festival Internacional da Canção deu o primeiro prêmio para a canção Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, deixando como segunda colocada a favorita Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré.
A lírica Sabiá foi vaiada, entre gritos do refrão da outra: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. As palavras de ordem mais diretas de Vandré não deixaram ver a beleza contundente da canção de exílio de Tom e Chico.
E então, meu passarinho, como a crônica precisa terminar, releio a viagem que fiz em tua cantoria e ponho em teu bico versos daquela Sabiá: “E algum amor / Talvez possa espantar / As noites que eu não queria / E anunciar o dia”.