Mais um começo com citação musical: “Tem gente que pira e berra / Eu já canto, pio e silvo / Se fosse minha essa rua / O pé de ipê estava vivo”. Dei de cantarolar por aí essa Canto em Qualquer Canto, letra do saudoso virginiano Itamar Assumpção para a música da cantante Ná Ozzetti. E é batata: sempre que me flagro balbuciando na rua essa graça de canção, certamente há algum ipê florido por perto.
Não que eu o veja antes e cante por associação. O comum é eu estar andando distraído, perdido entre ansiosos pensamentos, quando a música me vem, qual uma possessão, como se um rabo de olho permanecesse atento ao redor e pusesse em minha boca o elogio da árvore florida.
Como 21 de setembro é Dia da Árvore, e é tempo de ipês floridos, e estamos sob Virgem, o signo da natureza, e a dois dias do início da primavera, é quase obrigatório que eu aqui cante em forma de crônica o valor das árvores. Ah, mas que obviedade!
Quem não sabe da importância das árvores? Outro assunto, já! Hum, essa voz cínica e amarga também costuma me atravessar. Mas sei bem o quanto ela é afinada no coro do capitalismo mais voraz, e sei bem o quanto essa voz soa a grito que emudece o entorno.
Na lógica de um crescimento sem critérios, elevamos a ganância à condição de base da própria vida. Em meio ao tilintar incessantes de moedas, a voz do consenso não tem tempo a perder com belezas efêmeras como a de um ipê urbano.
Caminhando e cantando e seguindo a canção, se tem gente que pira e berra com olhos de cifrões, eu pio e silvo, feito um passarinho que vê numa árvore um universo inteiro. Sim, se fosse minha essa rua, e aquela outra e aquela acolá, elas estariam ladeadas de variadas espécies de ipê — somente para ficar na árvore que ora me incendeia os sentidos.
Amar as árvores é um dom que muito me orgulha e pelo qual sou grato à vida. Aliás, vida e árvores são elos de uma mesma cadeia de abundância e beleza — a não ser que optemos pela crueza visceral dos desertos.
E aí mora o perigo: vivemos num tempo de inversões e simulacros, em que o ambiente agoniza enquanto fazemos cara de paisagem. A ancestral sacralidade da natureza foi substituída por mortais receitas de progresso. Daí que a exuberância de um ipê amarelo na região central de Caxias do Sul me vem como um facho luminoso em meio à tarde escura de queimadas e fumaças que o vento traz de outras paragens, a nos lembrar que estamos todos na mesma casa planetária. Ver o ipê me desperta de minhas alienações.
Tamanho esplendor, não dando margem a que ninguém o ignore, só pode ser um recado urgente da natureza — aqui compreendida, sob a ótica de Virgem, como o referencial maior de ordem. Sem me refazer do seu impacto poético e místico, cabe-me — ó criatura essencialmente racional — buscar informações sobre o ipê. Que o Google cumpra sua função!
Descubro que o ipê, nativo das Américas, é apontado como símbolo afetivo do Brasil, por estar presente em todas as regiões e pela diversidade de cores de suas copas nesta época — há espécies de floração em amarelo, rosa, roxo, branco e até verde. Seu nome vem do tupi e quer dizer “árvore cascuda”. Também é conhecido como pau d’arco, porque os indígenas usavam seus galhos para fazerem os arcos de caça e defesa. Sua madeira é nobre, sendo amplamente usada em construções, móveis e até pontes. Beleza e firmeza: eis o ipê!
Assim como os jacarandás, os ipês perdem as folhas no inverno para melhor se exibirem na florada monumental do começo da primavera. Mais que um presente aos nossos sentidos, o ipê parece convocar os humanos de boa vontade a uma luta sagrada em prol da vida, contra os malditos que queimam florestas.
Então, com meu imaginário escudo de casca grossa e meu arco em punho, encerro meu canto crônico e florido com o final da citada canção: “Canto porque é preciso / Porque essa vida é árdua / Pra não perder o juízo”.