Já rola o maior burburinho sobre a nova versão da novela Vale Tudo, que a Globo prepara para 2025. Ainda que a emissora não tenha revelado nada sobre o remake da trama que estreou em maio de 1988, colunistas de televisão especulam que Fernanda Torres será intérprete da vilã Odete Roitman.
Muito se discute sobre o quão politicamente incorreto soaria hoje o tom de desprezo e humilhação com que a ricaça abordava os outros e o próprio Brasil. Pois o que se dizia e se fazia há 36 anos, na realidade ou na ficção, já não se diz e se faz hoje, num contexto de maior vigilância sobre linguagens e posturas. Mas uma coisa é certa: tanto quem viu quanto quem não viu a novela original estão vibrando com o retorno da mais cultuada megera da tevê brasileira.
Teria sido ali, em Vale Tudo, que começamos a gostar mais dos malvados do que dos mocinhos? A própria novela discutia a moral nacional, questionando os limites da ética e da bondade num país que parecia tomado pelo oportunismo radical como modelo de sucesso. Valia tudo para se dar bem na vida?
A trama de Gilberto Braga, escrita em parceria com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, contrapunha personagens sem nenhum escrúpulo, como Odete Roitman e Maria de Fátima, a outros que defendiam a honestidade plena, como a incansável Raquel. Numa ferroada de mestre do escorpiano Gilberto Braga, a novela fez um baita sucesso exatamente por tocar em pontos sensíveis do país do jeitinho — e na hora certa.
Como a arte é antena do tempo, um sucesso como aquele certamente refletiu ondulações do coletivo. No céu, Saturno, Urano e Netuno se alinhavam em Capricórnio, começando a quebrar tradições e estruturas que imaginamos permanentes. Blocos e fronteiras entraram em colapso, reconfigurando o mundo. Logo caiu o muro de Berlim, a União Soviética se dissolveu e a internet se anunciou.
Tudo ganhou contornos mais difusos — esse toque de Netuno que relativiza as definições. E talvez por isso — para o bem e para o mal — as velhas noções de moral também foram abaladas. Nas narrativas, mocinhos passaram a soar aborrecidos, enquanto os vilões se humanizaram, parecendo muito mais interessantes. Então viria uma avalanche de anti-heróis irresistíveis.
Logo em 1990, foi publicado o livro infantil Shrek pelo americano William Steig. Nele o ogro abandonava o lugar de nojo e vilania das antigas histórias para ganhar protagonismo e total simpatia. O filme, de 2001, foi um estouro — na bilheteria, no Oscar e, principalmente, no coração dos espectadores. Nunca mais os contos de fadas foram os mesmos. Tchau, heróis solares e chatérrimos! Bem-vindos, antagonistas cheios de sombrias e humanas nuances! Em tempos cínicos e desencantados, fora Batman e viva o Coringa!
Falando em Coringa, está para sair novo filme com o personagem. O ogro fedorento Shrek ganhará seu quinto longa em 2026. Malévola e Cruela já não têm nada de detestáveis, haja vista as fantasias que as meninas gostam de usar. Pois sim, Darth Vader perdeu o trono de personagem tão escuro quanto fascinante, em meio a tantos outros que não cessam de surgir.
E nas novelas, de Odete Roitman para cá, o público tem saudade mesmo é de Raquel (Mulheres de Areia), de Nazaré, de Carminha...
Pelas relações entre a arte e a vida, é saudável que façamos nossas catarses nesse apreço pelos vilões — até porque os autores investem na adorável complexidade dos antagonistas.
O problema é que, nos ainda mais confusos tempos atuais, de alucinações, mistificações e perda de referenciais, a identificação com o monstruoso vazou da ficção para a realidade — até porque ninguém sabe mais o que separa essas instâncias.
Numa macabra brincadeira séria, muita gente boa quer por representante político quem tem por bandeira o pior do humano — o execrável assumido.
Então vale tudo, pessoal? Ai, ai, melhor deixar a Odete Roitman do outro lado da tela...