Sem precisar viajar no conceito de sociedade do cansaço, conforme pensou um filósofo oriental sobre nosso tempo, quero comentar um tipo de cansaço mais específico e corriqueiro: aquele que surge de nossa contínua fuga do assédio virtual. Meu Deus, que chatice! Se a gente já não vive sem o onipresente celular, também já não nos deixam viver sem seguidas ligações querendo nos convencer a consumir ou a aderir a sei lá o quê. Não bastassem os serviços dos famigerados telemarketings de empresas, aparecem cada vez mais abordagens claramente picaretas, com fins extorsivos sempre. Que nome dar a esse mal moderno que nos extenua entre a raiva e a impotência?
Leio que a Anatel, agência responsável por regulamentar esse tipo de serviço, recentemente estabeleceu novas regras sobre o disparo abusivo de chamadas ao público. Mas tal regulamentação gira em torno do tempo das abordagens, as tais chamadas curtas — e aí fui entender porque às vezes as ligações sequer completam ou vão direto para a caixa postal do celular. Pelo que li, o número de chamadas curtas não pode ultrapassar 85% do total de chamadas enviadas pelas empresas — e eu com isso? Também li sobre a obrigatoriedade do prefixo 0303, para que já saibamos do tipo de ligação. Só não vi nada sobre o meu direito de não ser incomodado.
Tudo bem: quem manda em nossa vida é o mercado, o país precisa crescer, a economia não pode parar, blá-blá-blá. E os incomodados que se mudem para o mato, onde não tenha sinal. Desgraçadamente, normalizamos esse tipo de invasão. Ao que parece, estamos vivendo o máximo efeito dos poderes do algoritmo, que tudo sabe a nosso respeito, enquanto vendem de forma descarada nossos dados. A gente finge que esquece disso, para não surtar de indignação. Certa vez, num rompante de birra, desisti de comprar um eletrodoméstico numa loja porque me exigiam o número do celular, mesmo com a compra à vista. Mas não adianta: até para comprar um antiácido numa farmácia, antes querem fazer meu cadastro — para ter desconto, alegam, e eu finjo que acredito.
Curiosamente, esse assédio monstruoso de ligações “tóxicas” – para usar o termo da hora — coincide com uma mudança em nosso perfil no uso do telefone. Depois de aplicativos como WhatsApp, com a troca de áudios e mensagens textuais, cada vez menos usamos a antiga ligação às cegas. A nova etiqueta comunicativa prescreve mandar antes uma mensagem perguntando se podemos ligar, quando não for melhor já remeter um áudio. Que coisa: ficou constrangedor telefonar sem consulta prévia! Assim, sempre que o aparelho toca, eu já sei que a possibilidade de ser telemarketing é altíssima. Bingo sempre!
Está ocorrendo o mesmo que se passou com os outrora fundamentais telefones fixos. Quando o meu antigo tocava, nunca era uma chamada útil, sempre era esse inferno invasivo. Daí cancelei ele, sem prejuízo algum. E agora é o telefone celular que vai se tornando obsoleto como telefone mesmo, tanto por outras formas de interação quanto por ter se tornado o porta-voz literal dos caçadores de grana.
E estes também se sofisticaram. Com os pagamentos por Pix e por cartões em toda parte, os larápios profissionais também tiveram que migrar para o meio virtual. Como ninguém carrega mais dinheiro, roubos agora são via internet. E haja alerta falso de bancos em que não tenho conta – ou mesmo de onde tenho. O velho “mãos ao alto” agora vem como convite para um traiçoeiro clique.
É por essas e outras que o celular se tornou mais um meio de irritação do que de comunicação. E não posso viver sem ele, repito. O sentimento que brota dessa ambígua relação ainda não tem nome. Somente me cansa demais. E pensar que esse objeto tão controverso virou uma extensão corporal e espiritual da nossa espécie – toda conectada, mas cada vez mais alienada e menos sapiens. Campo fértil para os atuais e novos exploradores...