Na praça com nome de poeta que é seu próprio coração de urbe, Caxias do Sul já apresenta mais uma edição de sua tradicional Feira do Livro. É a quadragésima, um feito notável de resistência em se tratando de um produto cujas condições para usufruto — tempo, silêncio e concentração — soam anacrônicas às demandas dessa era de nervosos e onipresentes estímulos virtuais.
O tema da feira, Colecionando Histórias e Memórias, vem bem a calhar no aniversário redondo. É hora de louvar tanto o conhecimento de qualidade contido nos livros quanto a própria trajetória dessa festa literária que sempre exalta a educação e a civilidade — itens que também não andam em alta nos comportamentos.
Falando em civilidade, acho o máximo que a Feira do Livro ocorra sob Libra e sob animados ventos primaveris. No signo das partilhas e de construção de pontes e diálogos, a infinita aventura do espírito humano rumo a um refinamento contínuo se amplifica. Ah, que maravilha um bom debate de ideias em ambiente respeitoso e cordial! Que beleza poder divergir sem perder a elegância e a escuta jamais! E quanta paz está embutida na compreensão de que só crescemos a partir das luzes que lançamos sobre o que desconhecemos.
Sim, o próprio conhecimento, sobre nós mesmos e sobre o mundo, sempre emerge do contato ou do confronto com os diferentes — os tais “outros”. Isso pode soar a inferno, como pensou o filósofo Sartre em certo contexto. Mas, numa ala da praça central caxiense, o velho busto de Dante Alighieri vem lembrar que, em nosso imaginário coletivo, ao inferno se sucedem o purgatório e o paraíso. E podemos escolher em que estágio queremos permanecer.
Inferno, hoje, é a estreiteza mental, é o abandono de qualquer reflexão em favor de apelos emocionais e até religiosos de fácil manipulação externa. Contrariando a imagem símbolo de Libra — a balança da razão fria e do equilíbrio —, pende-se facilmente para o calor de emoções orquestradas por diabólicos aspirantes a líderes. Seguidores com almas entorpecidas engrossam as fileiras de influenciadores versados em catarses e controles. E descambam todos para as profundezas dos mais baixos instintos.
É desalentador constatarmos que tantas modernas conquistas científicas, a testemunharem o poder da inteligência humana, hoje caminhem lado a lado com deliberadas opções pela ignorância. Aliás, o grande mal dessa época de extremos e paradoxos é exatamente a bizarra e destrutiva combinação de estupidez com tecnologia.
Burrices orgulhosas e conectadas em redes proliferam em toda parte, qual uma manada irmanada pelo ódio que a nutre e pela violência como estratégia de ação. E ainda anseiam, com tal receita de barbárie, propor — ou impor — um projeto de futuro decalcado do pior do passado. Ai, pobres sapiens que já não sabem, ou não querem, mais pensar...
Mas vamos aos alentos, às esperanças possíveis para transcendermos mais essa triste quadra evolutiva, mais essa página infeliz de nossa história. Vamos à Feira do Livro, com sua coleção de histórias e memórias que clareiam e vivificam nossa inteligência. Vamos aos convites que cada exemplar à mostra oferece para uma jornada de crescimento pelo olhar dos outros, num benéfico e curativo exercício de alteridade. A leitura, com seus requisitos de entrega e atenção, sempre será sanadora de nossos desvios cognitivos.
Acordai, meu povo! É primavera, e ainda que o Sol brilhe em vermelho — haja correções a fazer no país! —, há um florescer natural como superior força de vida. Estamos em Libra, e sempre nos cabe treinar a humana capacidade de ouvir, cooperar, conciliar e, por fim, amar. É tempo de encontros luminosos na Feira do Livro, com os outros e com os livros, feito antídotos contra o obscurantismo perverso que nos ronda. Na praça que leva o nome de um genial poeta, instauremos, enfim, um lúcido paraíso das mentes de boa vontade.