Desde a véspera da invasão da Ucrânia, o governo brasileiro tem emitido sinais dúbios sobre como o país se posiciona diante do ataque russo. Boa parte dessa confusão tem origem em declarações feitas pelo presidente Jair Bolsonaro que destoam da postura adotada pelo Itamaraty nas discussões realizadas no âmbito da ONU. Enquanto Bolsonaro oscila entre demonstrações de simpatia ao colega russo Vladimir Putin e a defesa de "neutralidade" diante do conflito repudiado pela grande maioria do Ocidente, a diplomacia brasileira apoia resoluções contrárias às ações de Moscou.
A falta de clareza política do Planalto sobre como reagir às ações do Kremlin se tornou motivo de controvérsia dentro e fora do país desde antes do início do confronto. Em viagem a Moscou em meados de fevereiro, Bolsonaro procurou evitar comentários sobre a crise. Mas, ao dizer que o Brasil era "solidário" à Rússia em uma conversa cara a cara com o próprio Putin, provocou indignação nos corredores da Casa Branca, em Washington, que já avisava o mundo sobre o risco iminente de uma guerra. Nesta semana, o presidente disse que jamais pregou solidariedade a qualquer país, mas "equilíbrio".
Mais recentemente, representantes da Ucrânia no Brasil reclamaram de outra afirmação: em entrevista coletiva concedida no domingo (27) em Guarujá, São Paulo, o presidente afirmou que o Brasil manteria uma postura de "neutralidade" e se recusou a classificar as mortes registradas até o momento como "massacre". O encarregado de negócios da embaixada ucraniana em Brasília, Anatoliy Tkach, disse na segunda-feira (28) que Bolsonaro estaria "mal-informado".
Posteriormente, o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, saiu a campo para contextualizar as manifestações presidenciais. França sustentou que a posição brasileira, na verdade, não seria de neutralidade, mas de "equilíbrio". Segundo o ministro, Bolsonaro estaria pensando em "imparcialidade", centrada na "busca de diálogo" e de "reconciliação" ao se referir ao confronto.
O presidente também argumentou que precisa tomar muito cuidado na forma de se referir às atitudes de Vladimir Putin porque uma eventual crítica poderia trazer prejuízos ao Brasil em razão da dependência das importações de fertilizantes da Rússia.
Já as posições adotadas formalmente pelo Itamaraty na ONU têm se alinhado bem mais ao consenso ocidental: o país votou favoravelmente à resolução do Conselho de Segurança que condenava o ataque à Ucrânia (vetada pela Rússia) e, em discurso, o embaixador brasileiro Ronaldo Costa Filho declarou que não se justifica "o uso de força contra a soberania de um estado-membro da ONU". Veja, a seguir, algumas das principais manifestações de Jair Bolsonaro sobre a guerra na Ucrânia.
O que disse Bolsonaro sobre a guerra
16 de fevereiro
Solidariedade à Rússia durante visita a Moscou:
"Somos solidários à Rússia. Temos muito a colaborar em várias áreas: defesa, petróleo e gás, agricultura, e as reuniões estão acontecendo. Tenho certeza que até mesmo essa passagem por aqui dá um retrato para o mundo que nós podemos crescer muito nas nossas relações bilaterais."
(Diante da imprensa, em Moscou, durante encontro com Vladimir Putin)
24 de fevereiro
Desautorização do vice Hamilton Mourão, que havia condenado a invasão:
"Vou deixar bem claro. O artigo 84 da Constituição diz que quem fala sobre este assunto é o presidente. E o presidente se chama Jair Messias Bolsonaro. E ponto final. Então, com todo respeito a essa pessoa que falou isso, e eu vi as imagens, falou mesmo, está falando algo que não deve, que não é de competência dela (...). Quando é que se fala algo sobre esse problema Rússia e Ucrânia? Eu falo depois de ouvir o ministro Carlos França, das Relações Exteriores, e o da Defesa, Braga Netto, e ponto final. Se for o caso, ouvindo mais algum ministro (...). Nós queremos a paz (...). Viajamos em paz para a Rússia, fizemos um contato excepcional com o presidente Putin, acertamos a questão de fertilizantes para o Brasil, somos dependentes de fertilizantes da Rússia, da Bielorrúsia (...)."
(Durante live semanal via internet)
27 de fevereiro
Reprovação da palavra "massacre", citada por jornalista, para descrever a guerra:
"Você está exagerando a palavra 'massacre'. Não há interesse, por parte de um chefe de Estado, como o da Rússia, de praticar um massacre contra quem quer que seja. Ele está se empenhando ali em duas regiões do sul da Ucrânia que, em referendo, em mais de 90%, em média 90% da população quer se tornar independente e quer se aproximar da Rússia. É isso o que está acontecendo."
(Entrevista coletiva concedida em Guarujá, SP)
Consideração sobre o presidente ucraniano, Volodimir Zelensky:
"O Zelensky é um comediante que foi eleito presidente da Ucrânia, acho que o povo confiou nele para traçar o destino de uma nação. Confiou a um comediante o destino de uma nação. Ele deve ter o equilíbrio, segundo a população ucraniana, para tratar desse assunto. Tanto é que ele já aceitou conversar."
(Entrevista coletiva concedida em Guarujá, SP)
Postura diante das ações russas:
"Eu vou esperar o relatório, como vai ser o projeto de resolução (da ONU), para emitir a minha opinião. Já adiantei, trabalhei, trabalhamos junto com os Estados Unidos, ativamente, no primeiro projeto de resolução. Lá não tinha nenhuma palavra... tinha, deixou de ter, a palavra condenação. Olha, pessoal, uma decisão minha pode trazer sérios prejuízos, não é econômico, não, que é grave também, sérios prejuízos para agricultura do Brasil (...)."
(Entrevista coletiva concedida em Guarujá, SP)
28 de fevereiro
Negativa de conversa com Zelensky:
"Nós temos que ter equilíbrio. Vamos resolver o assunto, não vai ser na pancada. Afinal de contas, você está tratando com uma das maiores potências bélicas nucleares de um lado. Do outro lado, está a Ucrânia, que resolveu abrir mão de suas armas no passado. Alguns querem que eu converse com o Zelensky, o presidente da Ucrânia. Eu, no momento, não tenho o que conversar com ele."
(Entrevista à Jovem Pan)