Um advogado de Porto Alegre e uma empresa que compra créditos trabalhistas — ganhos em processos dos clientes deste profissional — são investigados por supostamente ludibriar pessoas que ingressam com ações na Justiça do Trabalho. O caso passou a ser observado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, que informou sete casos suspeitos à Polícia Civil. Há uma série de outros processos sob análise. Na manhã desta sexta-feira (14), a Polícia Federal cumpriu nove mandados de busca e apreensão e instalou tornozeleira eletrônica no advogado, que também está impedido de atuar.
Nos últimos dois meses, o Grupo de Investigação (GDI) analisou processos trabalhistas, cíveis e certidões públicas que envolviam o nome do advogado Alessandro Batista Rau. Uma das condutas sob suspeita envolve crédito de R$ 400 mil. O valor total da indenização do autor contra sua antiga empregadora reivindicava R$ 1,8 milhão, mas os R$ 400 mil já foram liberados pela Justiça em relação a fatos que o juiz entendeu estarem comprovados. O dinheiro foi depositado pela empresa em juízo, mas o advogado do autor da ação não o avisou sobre o crédito disponível para saque.
Em um passo seguinte, uma empresa chamada Pertto Perícias Contábeis Ltda, que, segundo as investigações, pertenceria ao pai do advogado, teria oferecido R$ 75 mil para comprar esses créditos e mais o restante que poderia ser definido pela Justiça como direito do autor da ação. O valor é bem inferior ao que já estava à disposição.
Como forma de convencer os clientes a fazerem a negociação, o advogado alegaria que o fim do processo poderia demorar anos e que ainda havia o risco de os direitos alegados pela parte não serem reconhecidos pela Justiça. Desta forma, seriam firmados acordos chamados de cessão de créditos trabalhistas para a empresa Pertto.
— Liguei mais de uma vez, fiquei o ano todo ligando, eles falaram que levaria mais três ou quatro anos para sair o dinheiro. Depois me ligaram oferecendo esse valor, eu tava numa situação bem apertada, eu aceitei — disse o trabalhador, que pediu para não ser identificado.
Em outro caso, um cliente com reclamatória de R$ 350 mil negociou os créditos por R$ 15 mil, sem saber que um valor muito maior havia sido liberado.
Venda de créditos é permitida, mas existem regras
A venda de créditos trabalhistas é permitida, mas há regras a serem seguidas (leia mais abaixo). Uma delas é a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que prevê o pagamento de pelo menos 40% do total a ser recebido, percentual citado em uma das decisões.
Além dos valores inferiores, o suposto esquema ainda fere o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Segundo a OAB, um escritório de advocacia não pode ter também a função de perícia judicial. No caso apurado, o advogado Alessandro Batista Rau seria sócio da Pertto, que compraria os créditos trabalhistas, mas depois teria passado tudo para o nome do pai dele, Carlos Roberto Rau.
Eles falaram que levaria mais três ou quatro anos para sair o dinheiro. Depois me ligaram oferecendo esse valor, eu tava numa situação bem apertada, eu aceitei .
CLIENTE DO ADVOGADO
O GDI apurou que pelo menos sete inquéritos que investigam estelionato, apropriação indébita e patrocínio infiel contra os clientes estão sob análise do delegado Vinícius Nahan, da 2ª Delegacia de Polícia Civil de Porto Alegre.
O advogado Diogo Teixeira, representante de uma das vítimas, fez um levantamento e apurou que há, atualmente, 198 processos trabalhistas em que Rau e a Pertto atuam em parceria, mas nem todos estão sob suspeita: são 171 na Justiça Trabalhista em Porto Alegre e outros 27 no interior gaúcho.
— Esta empresa chegou a ficar no mesmo local do escritório de advocacia, o que é incompatível com nossas atividades de advogado. Constava até no site dele que ele indicava a Pertto para fazer os cálculos, além de cobrar valores exorbitantes. O agravante é que os clientes não sabiam que essa empresa era do pai dele, eles só falavam que eram parceiros — ressalta Teixeira.
Contraponto
O advogado Gustavo Nagelstein, que defende Alessandro Rau, informa que enviará uma nota completa à imprensa nas próximas horas, mas antecipa que ficou, junto com seu cliente, surpreso com a medida porque já haviam explicado todos os detalhes para a Polícia Civil. Além disso, o investigado se colocou à disposição da Polícia Civil e na última quarta-feira (12), Nagelstein e Rau foram à Polícia Federal para dar mais explicações e adotar a mesma postura: contribuir com o inquérito e se colocar à disposição.
— Não configura ilicitude porque todos os valores que são objeto de averiguação estão documentados, foram combinados com os clientes e repassados anteriormente, com recibo e tudo. Qual a possibilidade de algo ilícito? Infelizmente nos surpreende — ressalta Nagelstein.
Para o advogado, é preciso cautela, porque há um processo pela frente. No momento, o caso está na fase de investigação, mas Nagelstein, que diz ter certeza da comprovação futura da inocência de Rau, ressalta o fato da imagem do seu cliente ter sido manchada. Segundo ele, 20 anos de trabalho que precisam agora ser recuperados pouco a pouco.
Como funcionaria o crédito trabalhista
- A venda de créditos trabalhistas funciona de forma semelhante à dos precatórios, que são ordens de pagamento expedidas pela Justiça para saldar valores devidos pelo governo em condenação. O trabalhador que ganha um valor determinado, mas ainda não recebeu, pode vender o crédito para uma empresa, que antecipa o pagamento em montante menor e se habilita para receber o volume total ao final. Tudo deve ser feito mediante contrato firmado oficialmente, sem a necessidade do consentimento do devedor. Ele apenas deve ser notificado da venda, assim como a Justiça do Trabalho.
- Essa movimentação, que ocorre há mais de uma década, mas se popularizou nos últimos cinco anos, é permitida pelo Código Civil, conforme os artigos 286 e 298. A empresa adquire os créditos após a sentença favorável ao trabalhador.
- O advogado do trabalhador não pode fazer a compra do crédito. Se o fizer, corre risco de cassação. Para isso, há empresas ou pessoas físicas especializadas, mas que também não podem fazer para o advogado da causa e muito menos serem ligadas ao profissional.
- Em um dos casos do advogado Alessandro Batista Rau, ao ser acionada, a Justiça do Trabalho suspendeu o processo em andamento, indicando o possível crime de patrocínio infiel, ou seja, quando o advogado utiliza informações privilegiadas contra o próprio cliente.