A imagem de cadeiras e classes escolares estocadas sem uso em um depósito da Secretaria Municipal de Educação (Smed), no bairro Jardim Botânico, doeu aos olhos de uma diretora de colégio do bairro Aberta dos Morros, em Porto Alegre.
O motivo: quando todos os estudantes da Escola Municipal de Educação Fundamental Professor Anísio Teixeira aparecem para as aulas, falta mobiliário.
— Os alunos têm que ficar carregando classe e cadeira de um lado para outro. Desde fevereiro, o secretário-adjunto Mário (de Lima) nos prometeu uma licitação para comprar e até agora, nada. Por que não entregam aquelas ali? Pago até um frete do meu bolso se precisar — desabafou a diretora Rosele Cozza Bruno de Souza, que também é representante do Fórum de Diretores das Escolas Municipais de Ensino Fundamental de Porto Alegre.
A entidade divulgou uma carta de repúdio a declarações do prefeito Sebastião Melo sobre a responsabilidade de diretores por materiais estocados sem uso em escolas.
O mobiliário a que Rosele se refere está guardado em um prédio alugado pela Smed por R$ 50 mil na Rua La Plata. Segundo a prefeitura, o material será destinado a uma escola que está sendo construída na Zona Norte.
As imagens foram reveladas em reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI) na quarta-feira (14). O imóvel é um dos quatro depósitos mantidos pela secretaria na Capital e nos quais o GDI localizou grande quantidade de materiais didáticos e esportivos, além de computadores, guardados sem uso. Tudo foi comprado em 2022.
No dia 8 deste mês, depois da publicação das reportagens, o prefeito chegou a dizer, em entrevista à Rádio Gaúcha, que a culpa de haver materiais estocados em caixas em algumas escolas era de diretores por possível motivação ideológica. Depois disso, o GDI esteve em dois depósitos lotados de materiais cuja distribuição deveria ter sido feita pela Smed.
A carta divulgada pelo fórum em resposta ao prefeito tem cinco páginas, nas quais estão listadas diversas carências e dificuldades que as escolas municipais enfrentam. O documento sustenta, por exemplo, que a maioria das instituições segue, em junho, sem ter recebido cadernos para os alunos e que os kits, incompletos, chegaram depois do começo das aulas. Em visita ao depósito da Smed na Rua Olavo Bilac, o GDI encontrou caixas de cadernos cobertas por fezes de pássaros.
Os servidores reclamam de falta de planejamento na aquisição dos materiais. "As equipes diretivas das escolas não foram consultadas sobre a escolha dos livros adquiridos pela Prefeitura", diz a carta.
"Nossos alunos necessitam de material pedagógico adaptado as suas necessidades individuais. Temos casos de estudantes que estão no 6º ano do Ensino Fundamental e ainda não estão plenamente alfabetizados", registra outro trecho.
O fórum também afirma que "os livros (que solicitam a distribuição entre nossos estudantes), que passaram a ser enviados desde setembro do ano passado, com grande demora para envio de orientações de uso, estão em incompatibilidade programática com os dois programas orientados pela SMED".
Os programas citados são o Alfabetiza+PoA e RecomPoa, projetos que, inclusive, estão em destaque em propagandas veiculadas pela Smed nos últimos dias. Para a diretora, nem mesmo o questionário que está sendo aplicado nas escolas esta semana por determinação do prefeito está abarcando toda a problemática.
— Chegaram aqui e me perguntaram: "Você acha que esse material (os livros comprados sem planejamento) contribui para a educação?" Eu disse: "Olha, tudo contribui para a educação." Mas o que não estão perguntando é se era necessário neste momento. E não era. Temos outras prioridades — diz Rosele.
Outra queixa descrita no documento é a de falta de pessoal: "O RH das escolas ainda não está completo, temos falta de professores e monitores em praticamente todas as escolas. Chegam os livros e materiais, mas professores e monitores demoram muito para chegar, inviabilizando o pleno desenvolvimento dos programas escolares".
— Como um diretor, que precisa dar aula por que faltam professores, vai conseguir dar conta de tudo isso? Tu tens que estar lá na sala de aula, que tempo a equipe pedagógica vai ter de olhar livro por livro? Os livros do Inca, esses que chegaram. Dizia ali 1º ano. Fomos olhar para colocar nas caixas literárias e eles não são adequados para o 1º ano. Tem muito texto, não serve para crianças que estão em processo de alfabetização. A gente teve que fazer uma readequação, uns tiveram que ir para a caixa do 2º ano, 3º ano, 4º ano. Precisa de tempo para fazer isso.
As publicações da Inca mencionadas pela diretora foram compradas pela Smed por mais de R$ 27 milhões em 2022. Somente em dois depósitos, o GDI localizou 130 mil livros estocados e sem uso, sem contar os que seguem encaixotados em escolas.
Por fim, Rosele disse que desde maio essas problemáticas têm sido levadas à Comissão de Educação da Câmara de Vereadores:
— A gente tem dito que louva a quantidade de materiais tecnológicos, principalmente, mas que a gente precisa de outras coisas antes, como professor, como conserto da parte elétrica, que cada um faz como pode, mas precisa mais. As escolas estão ficando velhas, as coisas estruturais estão começando a aparecer.
O que diz a carta do Fórum de Diretores das Escolas Municipais
O que diz a prefeitura
"A Prefeitura de Porto Alegre, por meio da Secretaria Municipal de Educação, reforça seu total respeito aos diretores das escolas, que juntamente com o corpo docente, formam a potente rede municipal de ensino da capital, historicamente rica em quadros qualificados, talentos e projetos exitosos. A SMED ratifica o papel de mantenedora e disponibiliza um permanente canal de diálogo para resolução das demandas e aprimoramento do serviço aos alunos das 98 escolas municipais.
Em resposta aos pontos abordados, esclarecemos:
- Os livros adquiridos são paradidáticos, ou seja, complementares e transversais, como material de apoio. Seguem as diretrizes das competências diversificadas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), como Empreendedorismo, Projeto de Vida, Educação Financeira e Sustentabilidade. São conceitos que imprimem a visão da gestão de investir na inovação pedagógica e tecnológica com o objetivo de melhorar os índices da Educação de Porto Alegre.
- Quanto aos livros direcionados às famílias, contemplam um novo conceito de extensão educacional e integração da comunidade escolar com os pais. É uma nova política pedagógica e extremamente importante, mas que representa uma mudança cultural na Educação Pública. Naturalmente, toda mudança passa por resistências, que a longo prazo, serão compreendidas e absorvidas.
- Os livros enviados pelo Ministério da Educação são os didáticos, que trabalham as disciplinas convencionais, como Língua Portuguesa e Matemática, por exemplo. Estamos cientes dos resultados insatisfatórios de aprendizagem, agravados pela pandemia. Por isso, criamos os programas Alfabetiza+POA, que trabalha com a atualização metodológica para buscar a alfabetização plena na idade certa, e o "RecomPOA", que busca reduzir a defasagem decorrente do período pandêmico. Lançamos, ainda, o sistema de "Correção de Fluxo" para recuperar os alunos com distorção de idade / série, que repetiram mais de uma vez durante o ensino fundamental.
- Dispomos de um plano de formação continuada, organizado pelo Núcleo Pedagógico da SMED. Todos os professores são convidados para as formações, bem como os diretores. Infelizmente, nem sempre há a adesão esperada.
- Historicamente há problemas de falta de professores na rede municipal, principalmente nas escolas localizadas em comunidades mais periféricas. Além disso, nos últimos anos, houve um elevado número de aposentadorias, transferências e pedidos de licença. A reposição dos quadros é uma das prioridades da atual gestão e, por isso, desde 2021 contratamos 938 novos professores. Fizemos um concurso recentemente, que será homologado no final do mês. Paralelamente, trabalhamos pela implementação de um novo programa de inclusão, que agregue monitores e profissionais multidisciplinares para atendimento da Educação Especial.
- Temos certeza de que os diretores comungam da ideia de valorização da tecnologia, como recurso indispensável para a Educação do século 21. Prova disso, dispomos de uma qualificada rede de 110 professores articuladores de Inovação, que trabalham nas 98 escolas com o apoio das respectivas direções.
- O secretário adjunto Mário de Lima, citado na carta, reafirma a total disponibilidade de diálogo para buscar soluções às demandas apresentadas pelos diretores. A renovação de mobiliário e as reformas de infraestrutura estão no escopo de prioridades da gestão, tendo em vista que as escolas estão organizadas em prédios antigos, que ficaram anos sem o devido investimento em manutenção e revitalização. O governo alterou a Lei Orgânica do Município em 2022, permitindo que as escolas possam, desde então, adquirir bens permanentes com maior agilidade e eficiência.
- Avançamos em um planejamento de amplas reformas em parceria com Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (SMOI), que dispõe de recursos humanos e técnicos para tais necessidades.
- Optamos por substituir o serviço antigo de porteiros por um plano mais completo de segurança escolar, que foi bem sucedido com a implementação de monitoramento por câmeras, alarmes, vigilantes 24 horas e instalação do sistema de botão de pânico integrado com a Guarda Municipal.
Por fim, respeitamos a autonomia dos diretores que são democraticamente eleitos e empoderados para a gestão escolar. Além das verbas repassadas pelo Plano de Aplicação de Recursos (PAR), o prefeito determinou a liberação de mais R$ 3,5 Milhões para que a SMED destine às direções com a finalidade de atender às demandas urgentes com agilidade.
As vistorias realizadas pelo Comitê Gestor Operacional visam solucionar os problemas de logística e corrigir os fluxos de distribuição de materiais das escolas.
Seguimos à disposição das equipes diretivas para, juntos, construirmos uma política educacional de mais qualidade, inclusão e equidade."