Bastou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anunciar a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no pleito presidencial de 30 de outubro para que, horas depois, eleitores do derrotado Jair Bolsonaro (PL) começassem a se deslocar rumo às rodovias. Dias se passaram, e alguns dos que bloquearam estradas passaram a se concentrar no entorno de quartéis.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) teve acesso aos conteúdos de alguns dos grupos que impulsionam esses protestos. Verificou como se organizam e são financiados.
O clamor pelas interrupções de estradas, sugeridas por influencers da extrema direita, ganhou entusiástico apoio em horas. Uma parcela de caminhoneiros, donos de restaurantes e postos que lhes servem de apoio formavam o front da paralisação. Também havia empresários.
É o caso de um dos herdeiros de uma das mais conhecidas transportadoras de Santa Catarina, Emilio Dalçoquio Neto. Ainda na noite de 30 de outubro, numa pizzaria, ele apelou que transportadores e o agronegócio não deixassem o Brasil ser governado pelos petistas. A fala, gravada em vídeo, ocorreu em palestra improvisada por ele num restaurante em Itajaí (SC).
— Agora acabou. Eu não aceito comunismo. Quem tem caminhoneiro amigo, gente do agronegócio, já vai falando com eles. Por enquanto, vai ficando pacificamente. Está no coração de cada um deixar o Brasil ficar comunista ou não. Saiam daqui e vão defender o Brasil também. O que eu falo aqui tem que reverberar pelo país inteiro, como nós temos aqui 380 grupos, do Rio Grande do Norte a Belém e Uruguaiana. Só depende de cada um — conclamou.
Na mesma madrugada, bloqueios de rodovias se concretizaram de Norte a Sul.
Dalçoquio já é investigado pela Polícia Federal por locaute (greve patronal) durante paralisações de caminhoneiros, em anos anteriores. Agora ele está também sob suspeita de financiar bloqueios de estradas em protesto contra a vitória de Lula.
O empresário catarinense foi contatado e não deu retorno ao pedido de entrevista feito por GZH.
Foram remetidos pelas polícias, ao STF, relatórios sobre 148 empresas de transporte e alimentos suspeitas de financiar bloqueios desde o dia da eleição. Um grupo específico de 42 empresários da região Centro-Oeste emprestou caminhões para encorpar protestos em Brasília, e o STF determinou então o congelamento das contas desses transportadores, quase todos de Mato Grosso.
Mas o apelo deles já havia reverberado nos grupos bolsonaristas, inclusive em outros Estados, como o Rio Grande do Sul. Empresários como Dalçoquio e Gerson Henrique Brixius — sócio de uma empresa de Venâncio Aires e que confirmou ter atuado nas interrupções de rodovias, como mostrou GZH —, cada um no seu tamanho e nicho, é que viabilizam uma das principais armas dos protestos, a paralisação das artérias de transporte brasileiras.
Nos quartéis
Depois que as polícias foram cobradas a desmobilizar os piquetes nas rodovias, os manifestantes reforçaram outra tática: acampar junto a quartéis do Exército. Com faixas, pedem "SOS Forças Armadas", num claro apelo ao impedimento da posse de Lula.
Em alguns casos, pessoas que trancavam rodovias foram para a frente das unidades das Forças Armadas. Mas a maior parte se desmobilizou.
Alguns continuam devotos. Passam o dia sentados em cadeiras junto aos prédios militares, repetindo cantos e hinos patrióticos — o Nacional, o da Bandeira e o do Exército.
A maior parte exibe cabelos grisalhos. Dizem-se aposentados. Muitos ali são militares reformados, por isso sabem de memória as letras marciais. Há donas de casa com parentes nas Forças Armadas ou nas polícias.
Nos primeiros dias, acreditaram que, se ficassem 72 horas em frente aos quartéis, ocorreria a intervenção militar e o resultado das eleições seria invalidado. Isso não aconteceu, e o prazo — dado por eles mesmos — foi dilatado. Várias vezes.
Já se passou mais de mês desde a eleição de Lula, e esses opositores radicais do presidente eleito acreditam em "sinais" que seriam disseminados de forma enviada por representantes das Forças Armadas, no sentido de que os militares vão tomar o poder.
— Os militares não podem falar, tu entendes? Mas já estão a caminho. Hoje mesmo determinaram aquartelamento. É preciso ter fé — comentou uma idosa enrolada na bandeira do Brasil, junto ao prédio do Comando Militar do Sul (CMS), na região central de Porto Alegre.
Os militares não estão aquartelados. Voltam para casa, como todos os dias. Mas os manifestantes continuam, ainda que em menor número. E apesar da determinação do STF para a remoção dos que "pregarem atos antidemocráticos".
As investigações da Polícia Civil e da Brigada Militar identificaram 54 incentivadores dos protestos no Estado. Os relatórios não indicam se ajudaram a financiar as mobilizações.
Entre os listados estão políticos conhecidos, como Luciano Zucco, deputado federal eleito pelo Republicanos e tenente-coronel licenciado do Exército. Em postagens no Instagram, em 7 de novembro, ele publicou fotos das manifestações em frente ao QG do CMS na Capital, dizendo: "Me levanto para levar o povo". Zucco ainda criticou deputados e senadores "que parecem estar escondidos".
Após a notícia de que o deputado consta na investigação da Polícia Civil, a assessoria de Zucco removeu do YouTube 122 conteúdos pró-manifestações, informa a empresa de análise de dados Novelo Data, a partir de informações do próprio YouTube. Alguns chamam o STF de "Corte política" e acusam o Supremo de ser "contra o povo" e "ultrapassar os limites'. Outros mostravam manifestações de 7 de setembro de 2021 e 2022, sempre tendo como o Supremo como alvo.
À reportagem, Zucco diz que não sabe como foi parar no relatório da Polícia Civil, já que sempre defendeu "manifestações pacíficas, sem qualquer trancamento de vias". Ele desafia a investigação a encontrar estímulos seus a atos ilegais. E admite que assessores podem ter retirado alguns vídeos da conta do YouTube, "porque fazem isso periodicamente".
Outro investigado pela Polícia Civil é o delegado Heliomar Franco, ele próprio da Civil, chefe regional da serra gaúcha. Simpatizante de Bolsonaro e candidato a deputado federal (não eleito), fez dezenas de postagens de apoio às manifestações em novembro. Afirma que se limitou a expor convicções políticas, sem pedido de intervenção militar, nem de bloqueio de vias.
As investigações foram remetidas ao STF antes que dois notórios empresários gaúchos assinassem um manifesto que fala em "processo espúrio de eleição de Lula, eivado de ilegalidades". Walter Lídio Nunes, presidente da Sociedade de Engenharia-RS, e Luís Roberto Ponte, presidente do conselho deliberativo da entidade, subscrevem o texto divulgado em 30 de novembro, no qual conclamam "o Poder Executivo e as Forças Armadas" a impedirem "que um poderoso líder corrupto assuma o poder com o objetivo explícito de conduzir o país para uma ditadura comunista".
Nunes, depois, recuou no posicionamento assinado na carta e disse que a solução para o Brasil é "democracia, sem intervencionismo das Forças Armadas". Ponte manteve apoio ao texto divulgado.
Mas a linha de frente das mobilizações é formada por gente menos conhecida. Um exemplo ocorre no Vale do Rio Pardo. Os atos são, em grande parte, catapultados por cabos eleitorais da família Moraes, ligada ao PL e ao bolsonarismo na região.
É o caso de Thiago Nery, que trabalha numa empresa de fumo na localidade de Rio Pardinho. Ele é fiel da Igreja Batista Nova Vida Santa Ceia do Senhor e cabo eleitoral do deputado federal Marcelo Moraes (PL-RS).
Do início a meados de novembro, enrolado em uma bandeira do Brasil, Nery foi um dos mais inflamados oradores ao microfone do caminhão de som colocado em frente ao principal quartel do Exército em Santa Cruz do Sul.
— Vamos lutar, vamos acreditar, vamos para a rua. Apoiar nosso presidente, no bem e no ruim. Estive na paralisação dos caminhoneiros, às 7h. Fui para casa, descansei e vim para o quartel. Não podemos nos conformar — discursou.
Procurado pela reportagem, ele confirma que prega contra o resultado das eleições, mas diz que já largou as manifestações, por ter de cuidar de uma filha pequena.
A mesma concentração de Santa Cruz do Sul é frequentada por outro fervoroso manifestante: Abel Trindade, assessor parlamentar de Marcelo Moraes. Em seu avatar, Trindade se define como "ativista político de direita, conservador, armamentista, patriota e bolsonarista". Nas redes, posa com armas, como fuzis (ele é integrante de clubes de CACs).
Em 30 de novembro, fez duas postagens. Na primeira, sobre Lula, escreveu: "Digo uma coisa, o ladrão não sobe a rampa". Na segunda, em referência a Bolsonaro: "Esperamos o comando do capitão, não vamos entregar o Brasil para aquela trupe de canalhas. Não queremos a volta da cleptocracia que imperava no nosso país e muito menos continuarmos reféns desse Judiciário corrupto e de seus ministros ditadores, que não respeitam a nossa Constituição".
Procurado pela reportagem, Trindade assume as postagens, diz que é livre para opinar sobre o destino do país, mas não se considera líder político.
— As manifestações são feitas pelo povo e por muita gente que nem vai em rede social. Não são atos inconstitucionais. Sobre minhas postagens, são pessoais e não do deputado para quem trabalho. Defendo o direito de as pessoas se armarem desde muito antes do Bolsonaro ser candidato.
Um terceiro expoente do grupo de WhatsApp do Vale do Rio Pardo é Marcel Knak. Suplente de vereador pelo PTB, ele é cantor sertanejo e ex-assessor de Marcelo Moraes. No grupo, compartilhou postagens que repetiam: "Brazil was stolen (fraude nas urnas)".
Procurado pela reportagem, ele admite ter feito manifestação em frente aos quartéis, mas assegura que está decepcionado com política.
— Sou mero mortal. Está tão horrível o que acontece com STF e TSE que, se tu te manifestares, os caras te bloqueiam. Acho errado tu não poderes falar o que pensas. Podem confiscar teu celular. Saí da vida política e não pretendo voltar. Quem fica quieto se dá melhor. Apoio o direito ao contraditório. A ter dúvida sobre as eleições.
Procurado, o deputado Marcelo Moraes desafiou a reportagem a provar que tenha algo a ver com a organização dos protestos contra o resultado das eleições. Admite que alguns assessores dele participam das manifestações, mas diz que não tem nada a ver com o que eles fazem nas suas vidas particulares.
— Além disso, são atos legítimos, que questionam várias ações duvidosas do TSE que beneficiam o ex-condenado Lula. Vários ministros do STF e também do TSE deram decisões que permitiram que Lula fosse candidato, contra a vontade do povo brasileiro. O próprio sistema de votação, das urnas, tem vulnerabilidades, como mostraram o meu partido e as Forças Armadas. Então é natural que se questione tudo isso.
O QG em Brasília
A capital federal registrou algumas das maiores manifestações contra a posse de Lula e talvez isso não seja coincidência. Servidores de confiança do governo federal, militares e policiais (da ativa e da reserva) ajudaram a apoiar os atos. E inclusive o mais conhecido advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef. Ele foi filmado insuflando protestos em Brasília, estimulando os bolsonaristas a não desistirem de rever os resultados da eleição.
Wassef endossa o pedido do PL, que protocolou no TSE documento no qual pede invalidação dos votos contabilizados em mais de 60% das urnas, mas apenas no segundo turno, embora essas urnas tenham sido usadas também no primeiro (o pedido foi rejeitado pelo ministro Alexandre de Moraes, presidente da Corte).
Assim como outros ativistas do bolsonarismo, o advogado frequenta uma casa no Lago Sul de Brasília que foi alugada para sediar o comitê de campanha de Bolsonaro. Após a derrota do presidente, o local virou uma espécie de QG dos inconformados com o resultado.
Um dos que aparecem todo dia ali é o general da reserva Walter Braga Netto, ex-candidato a vice. Ele recebe prefeitos que organizam manifestações Brasil afora e também parlamentares.
É o caso dos gaúchos Marcel Van Hattem (Novo) e Osmar Terra (MDB), que visitaram Braga Netto nessa residência em 17 de novembro. Outro é o senador Eduardo Girão (Podemos-DF).
Terra prefere não detalhar sua visita, mas admite que esteve no local para buscar informações sobre a iniciativa do PL (antes da auditoria do partido ser divulgada). O deputado afirma que queria ter a informação mais adequada e saber das novidades.
Van Hattem, que acaba de liderar um pedido de CPI para investigar supostos abusos de autoridade de Alexandre de Moraes, diz que esteve no QG do PL no mesmo dia em que Terra, pelo mesmo motivo. Ele afirma que foi na residência, "por um acaso", para tratar com o senador Girão sobre possível apoio ao pedido de investigação das urnas. Não tem a ver com qualquer iniciativa golpista.
— Estamos num momento político no Brasil que vou te contar. Agora a Polícia Civil faz investigação política? Tenho colegas mencionados porque fizeram postagens contra o Lula. O (empresário) Luciano Hang está com página censurada há uns cem dias, por ter participado de uma conversa de WhatsApp. Qual a base para isso? O fato de as pessoas irem para a frente dos quartéis demonstra a falta de confiança delas na política. Até por isso fiz o pedido de CPI — afirma Van Hattem.