Bastou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anunciar a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no pleito presidencial de 30 de outubro para que, horas depois, eleitores do derrotado Jair Bolsonaro (PL) começassem a se deslocar rumo às rodovias. Montaram bloqueios nos principais Estados e avisaram: só sairemos quando o Exército tomar o poder.
Na prática, um golpe militar. Esse era o teor dos depoimentos gravados em vídeo, na madrugada posterior à eleição, no grupo de Telegram "Caminhoneiros e Agro pelo Brasil", que reúne 890 pessoas.
Entre os locais bloqueados em 31 de outubro estava a RS-287, em Venâncio Aires (RS). E um dos que obrigaram veículos a parar é Gerson Henrique Brixius, sócio de uma empresa de terraplanagem naquele município do Vale do Rio Pardo (foram usadas retroescavadeiras e caçambas para interromper o tráfego).
As redes sociais dele, nos dias anteriores e posteriores ao pleito, estavam repletas de postagens sobre o risco de o Brasil "virar Venezuela", sobre supostos enriquecimentos de petistas e apelos para que Bolsonaro "salve o Brasil do comunismo". Brixius foi das palavras à ação, virando um dos rostos visíveis da organização dos bloqueios.
GZH conversou com ele, que negou ser líder, mas confirmou ter atuado nas interrupções de estradas:
— Entre meus princípios está não aceitar um ex-presidiário como presidente da nação. E foram vários que bloquearam a rodovia. Uma andorinha só não faz verão.
A palavra de ordem "vamos parar o Brasil" foi disseminada entre mais de 500 grupos fechados, 300 deles no Telegram, o aplicativo favorito dos bolsonaristas. O restante, no WhatsApp. O levantamento é do projeto Democracia Digital, monitoramento de interações sociais feito por pesquisadores das universidades federais da Bahia (UFBA) e de Santa Catarina (UFSC).
Não espanta que essa articulação tenha ocorrido em horas. É que a proposta conservadora, perdedora da eleição presidencial no segundo turno, teve vitórias importantes no parlamento, no primeiro turno. Esses eleitos e seus cabos eleitorais (espalhados pelo Congresso, assembleias legislativas, câmaras municipais e prefeituras) ajudaram a capilarizar a mobilização, que teve apoio financeiro de empresários. A organização dos atos, que pedem uma intervenção inconstitucional, está na mira do Judiciário.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) teve acesso aos conteúdos de alguns dos grupos que impulsionam esses protestos. Verificou como se organizam e são financiados.
Nesta reportagem, são pinçados, dentre muitos manifestantes, exemplos de gente que está na linha de frente dos atos e outros, que lhes servem de inspiração e estímulo. O trabalho ajuda a entender o movimento de extrema direita, de inclinação golpista, atenuada por um desconexo pedido de intervenção federal.
Um mosaico de conservadores
Há de tudo um pouco nos grupos que organizam os protestos. Alguns, sobretudo os de matiz evangélica, são antiaborto, contrários ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e profundamente religiosos.
Outros são adeptos do direito de o cidadão se armar (organizados em torno de clubes de Caçadores, Atiradores e Colecionadores de armas, os CACs). Esses têm subgrupos que defendem rigor total contra o crime, no estilo "bandido bom é bandido morto".
Há ainda civis e militares nostálgicos da ditadura, monarquistas, lava-jatistas (defensores da Operação Lava-Jato) e transportadores (tradicional grupo de apoio de Bolsonaro). Mesmo com discordâncias ideológicas, esses núcleos se interrelacionam a partir de um ponto em comum: detestam o PT e Lula.
Esses grupos conservadores se retroalimentam de postagens de algumas celebridades do Instragram e do TikTok. Um deles, Nikolas Ferreira (PL), o deputado federal mais votado do Brasil, eleito por Minas Gerais e que se define como "influenciador cristão".
Ele é um dos que convocaram os bolsonaristas, na noite do pleito, a não deixarem "a semente ruim da esquerda" florescer. Seus vídeos tiveram centenas de milhares de compartilhamentos.
Outro que fez apelo aos bolsonaristas é o blogueiro Allan dos Santos, que está foragido nos Estados Unidos, acusado de atos antidemocráticos. Ele usou um de seus 17 perfis no Instagram para convocar bloqueios de estradas e vias. E atacou o Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive xingando presencialmente alguns dos ministros da Corte em Nova York, onde eles participavam de conferência no mês de novembro.
Uma terceira influencer atuante no impulsionamento das manifestações, via Instagram, foi Heloísa Bolsonaro, mulher de Eduardo (filho do presidente e deputado federal), que se define como "bolsonora".
Essas performances de pessoas que são referência, sobretudo digital, servem para manter a chama das manifestações — em atos considerados "antidemocráticos" pelo STF, porque a Lei do Estado Democrático de Direito, sancionada em 2021 para substituir a Lei de Segurança Nacional, da ditadura militar, acrescentou que quem incita publicamente animosidade entre as Forças Armadas e os poderes e as instituições também responde por incitação ao crime, atesta o criminalista gaúcho Alexandre Wunderlich, autor de um livro sobre segurança nacional.
A incitação, prevista no Código Penal, prevê detenção de três a seis meses. Podem incorrer também em delito de organização criminosa (ao agirem em conjunto na multidão), com pena de reclusão de três a oito anos.
As articulações contra o resultado das eleições no Brasil tiveram inspiração internacional e já eram cogitadas por muitos bolsonaristas, caso as pesquisas de intenção de voto, que indicavam vitória de Lula, estivessem certas. Ainda na noite de 30 de outubro, o estrategista Steve Bannon, expoente da Alt Right (a extrema direita americana) e das campanhas de Donald Trump, deu entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, na qual afirmou:
— A vitória de Lula foi roubada e Bolsonaro não deveria reconhecê-la.
Esse depoimento foi replicado nos principais grupos bolsonaristas nas redes, dando impulso à resistência contra a vitória de Lula. Bannon tinha dado a mesma orientação a Trump, quando este foi derrotado na tentativa de se reeleger, em 2020. O resultado foi um mês de protestos por parte dos militantes trumpistas, que invadiram o Capitólio (sede do Congresso dos EUA), em janeiro de 2021, num episódio que deixou cinco mortos e 138 feridos.
Bannon, investigado pelo episódio e condenado por desvios de fundos de campanha, é um dos principais pregadores de "ação direta" a movimentos de direita em todo o mundo — aquela tática de unir manifestações populares com ataques sistemáticos aos adversários. Encontrou-se com Bolsonaro e com seus filhos, com destaque para Eduardo, que, inclusive, teve reunião com o staff de Trump após a derrota do pai nas eleições. Foi sugerida a ele negação da legitimidade da vitória de Lula.