O mundo que vamos deixar para quem vem depois é a provocação que Grazi Mendes, especialista em diversidade, equidade e inclusão faz em Ancestrais do Futuro, seu livro recém lançado. Em entrevista a Zero Hora, a profissional destaca como que esse futuro deve dialogar com a necessidade de ampliar a educação tecnológica para que mais pessoas consigam buscar soluções. Além disso, defende que não há inovação sem diversidade e que são fundamentais as perspectivas diferentes sobre a mesa para criar pontes sustentáveis.
Grazi Mendes é diretora de Diversidade, Equidade e Inclusão para América Latina na Thoughtworks, consultoria global de tecnologia. Foi reconhecida como uma das cem futuristas afrodescendentes mais influentes do mundo pela MIPAD (da sigla em inglês Most Influential People of African Descent) em parceria com a ONU. Confira a entrevista:
Como a inovação e as práticas ESG se relacionam e como essa inovação pode ser inclusiva?
Para mim, não há inovação sem diversidade. Podemos falar sobre algumas mudanças, mas se a gente está buscando inovação real, que encontra novas soluções, que potencializa a criação de produtos ou serviços, necessariamente a gente está falando que você precisa da diversidade para potencializar essa inovação. Precisamos das perspectivas diferentes na mesa, da nutrição de um ambiente que seja inclusivo o suficiente para que essas vozes, essas perspectivas distintas, possam ter espaço para dialogar, para criar pontes, para criar, inclusive, os tensionamentos criativos. Chamamos de tensão criativa, que é o ingrediente de potencialização dos processos de inovação. A inovação só é válida se ela estiver conectada com as necessidades que temos dentro da sociedade, mas gerando soluções que, de fato, geram valor para a sociedade, esse é um ponto de partida que a gente acredita muito na ThoughtWorks. Independente do momento, da história, do contexto, poder conciliar as demandas da sociedade, e aí estamos falando de todas as letrinhas que envolvem o ESG. Estamos falando sobre as questões climáticas e ambientais, sobre as dinâmicas sociais e o que está envolvido e imbricado nisso também, sobre essas práticas de governança. Tudo isso passando por essa lente da diversidade, da inclusão, para que a gente possa pensar em produtos e tecnologias que deem conta dos desafios contemporâneos que temos. Acho que passa muito por esse lugar. Como ela pode ser mais inclusiva? Só com a intencionalidade. Sem intencionalidade, vamos reproduzir como padrão de normalidade os contextos de exclusão, de desigualdade, da homogeneidade dentro dos espaços. Com a intencionalidade, é um caminho para a gente poder conseguir que essa inovação seja cada vez mais inclusiva.
Precisamos das perspectivas diferentes na mesa, da nutrição de um ambiente que seja inclusivo o suficiente para que essas vozes, essas perspectivas distintas, possam ter espaço para dialogar, para criar pontes, para criar, inclusive, os tensionamentos criativos.
GRAZI MENDES
Diretora de Diversidade, Equidade e Inclusão para América Latina na Thoughtworks
Quais são os resultados verificados na Thoughtworks e o que tem sido alcançado com a união da inovação e diversidade, já que é uma empresa de tecnologia que lida com a questão da diversidade desde a sua fundação?
Está no DNA da empresa, até porque é uma empresa pioneira em agilidade no mundo. Temos uma composição estratégica que fala do nosso porquê, que tem a composição das lentes que direcionam o nosso negócio. Nesse momento que se pensa muito no impacto das tecnologias emergentes, como inteligências artificiais, isso tudo passa também por esse olhar, como pensar em tecnologia responsável diante dos desafios que temos com as inteligências artificiais, com privacidade, segurança. O tempo inteiro existem questionamentos que nos movem, que é quem está criando a tecnologia, quem está se beneficiando com ela, e como é que a gente amplia para que essa tecnologia seja uma tecnologia cada vez mais responsável. Fazemos essas construções com nossos clientes e junto a todas as empresas de um ecossistema que se mobilizam também com a mesma perspectiva. Temos um quadro de profissionais que trabalham com a gente que é muito mais diverso do que a média das empresas pelo mundo todo. Vamos considerar as questões de gênero, por exemplo. Hoje temos globalmente 40% de mulheres e outros gêneros subrepresentados nos papeis de tecnologia. Isso para nós é um movimento que vem sendo construído ao longo dos anos para que tenhamos mais equidade dentro desse processo.
Conseguir reproduzir a diversidade que temos na sociedade dentro da nossa comunidade faz com que possamos trazer para a mesa essas perspectivas na hora que estamos criando, que estamos propondo, mas também como uma forma de desenvolver as habilidades que a gente precisa como consultoria. O fato de um ambiente mais homogêneo limita, por exemplo, as nossas discussões, as nossas discordâncias, porque você acaba tendo perspectivas muito similares. Como consultores, a gente precisa desenvolver essas tecnologias humanas, por exemplo, da curiosidade, do questionamento. E essas são ferramentas e tecnologias humanas que só se desenvolvem em ambientes mais diversos. Aqui dentro fazemos conversas permanentes, têm nutrição de um ambiente que favorece a inclusão, a acessibilidade. Estamos o tempo inteiro levando as pessoas a refletirem sobre as dinâmicas sociais que estão envolvidas, sobre o impacto das tecnologias que estão sendo criadas. Rodamos algumas conversas específicas sobre o mês da consciência negra, por exemplo. Tivemos uma conversa sobre como que a perspectiva de design de futuros e a inclusão de mulheres negras na tecnologia amplia possibilidades, acesso, por exemplo. Colocamos as pessoas, de fato, para fazerem essas discussões, que são super relevantes para o nosso tempo dentro do ambiente de trabalho, porque isso influencia na hora que as nossas consultoras estão buscando soluções, estão criando produtos e serviços para as clientes. A gente trabalha com as alavancas que envolvem a estratégia do negócio, ao mesmo tempo, diversidade, equidade e inclusão são parte dessas alavancas. A nutrição desse ambiente em que a gente faz conversas para aumentar a conscientização das pessoas, para estabelecer diálogos diante da complexidade que a gente vive na sociedade. Isso tudo em busca de conseguirmos entregar um valor maior no final dos nossos processos.
O que seria o “design de futuros”?
Hoje, uma das coisas mais discutidas é a questão das perspectivas futuras diante da velocidade que das mudanças, o aumento da complexidade. E, por um tempo, os estudos de futuros ficaram muito focados nessa ideia de fazer previsibilidade do que vai acontecer. Os estudos contemporâneos de futuros trabalham sempre pensando no potencial de mudança para a construção de realidades preferíveis. O que é isso? É a partir desse lugar que o futuro é sempre uma possibilidade. E, se ele é uma possibilidade, ele tem um espaço, um contexto para que ele possa ser projetado e que ele não precisa ser projetado a partir da perspectiva, por exemplo, do norte global, que é essa ideia da colonização da imaginação. O design de futuros, dentro do meu campo de atuação, que junta diversidade, que olha para as realidades locais, no nosso caso o sul global, em que a gente pode projetar futuros a partir da abundância e da inclusão de mais perspectivas. Aumentar o protagonismo que temos nos nossos campos de atuação e nas decisões que tomamos para que possamos construir, desenhar e projetar futuros que sejam com base nas multiétnicas, na dignidade humana, nessa ética do cuidado, na ideia de que tecnologia. Futuro não é só sobre a tecnologia, mas é também sobre ela, porque está acelerando futuros. Quando eu pego uma empreendedora de favela e trabalho com ela a utilização de uma ferramenta de inteligência artificial para poder construir seu plano de negócio, sua estratégia de comunicação, como que ela se relaciona, a gente tem um impacto na base da pirâmide que potencializa, por exemplo, a inclusão de mais pessoas com talentos em tecnologia, que é um déficit que a gente tem. Temos essa necessidade, principalmente projetando os desafios futuros que estão pela frente, já que todos os negócios estão se tornando negócios de tecnologia. Como que a gente pode ter formação para termos mais talentos diversos atuando em tecnologia? Isso faz com que a gente crie a possibilidade de que essas novas tecnologias que serão criadas tenham como protagonismo as margens. O meio já está lá.
Esse termo se relaciona com o livro Ancestrais do Futuro, que você lançou recentemente?
Ancestrais do Futuro é um convite. Esse livro tem um foco que dialoga comigo, com você, mas também com pessoas que ocupam posições de lideranças em grandes empresas, ou quem está entrando no mercado de trabalho agora, para que a gente se responsabilize por quem nós somos no tempo, ou seja, como que a gente pode honrar o que foi construído antes e a gente recebeu hoje, que a gente tenha coragem para corrigir decisões que foram tomadas no passado e que não nos estão levando para a construção de futuros melhores, e que a gente se responsabilize por aquilo que a gente deixa para quem vem depois. Ele parte da premissa da justiça intergeracional, ou seja, você recebeu um mundo, um legado, condições de vida, de existência, tecnologias, por quem veio antes, você agora tem responsabilidade a partir do que você faz com aquilo que você recebeu. Tem um lugar também de conseguirmos entregar um mundo, um futuro melhor para quem vem depois. Essa ideia de que a gente pode, a partir de múltiplas perspectivas, construir e desenhar pactos, movimentos que nos levem a ter possibilidades de futuros melhores.
Em tempos de inteligência artificial, como garantir a convivência harmoniosa entre essa tecnologia e o trabalho humano?
Na Thoughtworks, trabalhamos com o conceito de Responsible Tech, que é uma ideia de que a tecnologia não é boa, não é ruim, mas ela nunca é neutra. E, portanto, precisamos nos organizar de forma responsável, porque nem sempre a gente consegue prever todos os impactos negativos da utilização de uma tecnologia quando ela está sendo criada. Mas podemos trabalhar desde o início para mitigar alguns desses impactos. Falamos sobre a utilização de inteligências artificiais para reduzir barreiras de empreendedoras que estão na base da pirâmide social, esse é um exemplo, mas temos também como que essas ferramentas podem ser usadas em grande escala para automatizar processos de grandes empresas, melhorar análise de dados, padrões com múltiplas informações. Já tivemos clientes trabalhando com monitoramento ambiental, por exemplo, para a utilização de inteligência artificial para ver as questões de desmatamento, otimizar o uso de recursos naturais também, porque aí você tem essa tecnologia alinhada a objetivos e operações mais sustentáveis. Também pode-se utilizar essas ferramentas para que você possa ter sua força de trabalho no processo de um reskilling, que é deixar a sua força de trabalho mais preparada para lidar com os desafios tecnológicos que estão pela frente e não pensar, por exemplo, só na utilização dessas ferramentas para reduzir a relevância de profissionais humanos. Você pode fazer esse processo aliado à amplificação das competências e das habilidades dos seus times de trabalho. Essa é uma forma de fazer esse alinhamento com a tecnologia a favor do desenvolvimento humano, a tecnologia a favor da busca de soluções para que possamos resolver problemas ambientais, de governança, de gestão e otimização de processos. Hoje, nas grandes discussões sobre inteligências artificiais falamos muito sobre transparência, como que ferramentas podem ser cada vez mais transparentes em relação a forma como as decisões são tomadas.
Na sua opinião, no que falta avançar?
Eu como professora acredito muito na ampliação da educação digital, dessa alfabetização digital das pessoas. Pessoas mais conscientes de como a tecnologia funciona conseguem questionar mais, conseguem buscar mais soluções que partam desse lugar de um entendimento maior dos processos que estão sendo permeados por tecnologia. É preciso ampliar urgentemente os investimentos na alfabetização digital e na formação de profissionais de tecnologia, mas não formação só focada nas ferramentas, mas essa formação do ser humano que está criando e desenhando os caminhos da tecnologia. São necessários profissionais de tecnologia que refletem mais sobre ética, sobre responsabilidade, sobre impacto socioambiental. Educação, para mim, é um pilar fundamental e é uma alavanca para a gente pensar no progresso tecnológico para o nosso país. Precisamos também garantir que sejam pensados parâmetros e responsabilização das empresas de tecnologia naquilo que fazem. O Brasil também tem liderado muitas dessas conversas e a gente ainda está buscando essas soluções, mas a gente precisa sim ter caminhos para que haja responsabilização do que está sendo criado e do impacto que essa tecnologia tem gerado no mundo, não dá para deixar que ninguém tenha responsabilidade pelos impactos da utilização em larga escala das ferramentas criadas.