O estudo Perfil Social, Racial e de Gênero, do Instituto Ethos, apontou que pretos e pardos compõem 14% dos cargos executivos e de diretoria e 26% de gerência nas maiores empresas brasileiras*, ainda que representem 55,5% da população do país. Nas companhias que mensuram o número de profissionais LGBT+, a faixa em cargos de liderança é de 0,7%.
Ainda que no Brasil haja 13,4 milhões de trabalhadores com 50 anos ou mais ativos (segundo a Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho), o olhar para esses profissionais não é o mesmo na distribuição de níveis hierárquicos. Segundo estudo publicado pela EY Brasil e pela Maturi, 78% das empresas ouvidas afirmam ser etaristas.
Ações afirmativas são apontadas como fundamentais para mudar o cenário. Elaine dos Anjos, 50 anos, Mariana Silveira Soares, 42, e Diogo Arruda, 37, profissionais em cargos de liderança em empresas no Rio Grande do Sul, estão na contramão desses números.
“Entendi que esse lugar também me pertence”
Era janeiro de 1993. O Brasil daria início à corrida das eleições gerais de 1994, após a renúncia de Fernando Collor, primeiro presidente eleito com o fim da ditadura. A inflação descontrolada corroía a renda dos brasileiros. Nesse cenário, Elaine dos Anjos, mulher preta, da periferia de Belo Horizonte, não vislumbrava futuro promissor.
Em frente à fábrica da Arezzo, também no bairro Glória, a jovem se juntou à multidão numa fila no anseio de uma oportunidade. Elaine cresceu vendo os vizinhos saírem pelo portão da empresa, onde aglomerava-se uma feirinha. Com dinheiro no bolso, os trabalhadores compravam uma coisa aqui, outra ali. Ela almejava o mesmo:
— Virou um sonho, naquele mundo que a gente vivia, poder trabalhar lá e não ser mais uma da família que não tivesse profissão.
A jovem buscava uma vaga na escola de sapateiros. Naquele dia, espiou a fileira de gente apinhada em frente à fábrica, e concluiu que isso não haveria de acontecer. Filha de duas domésticas — a de criação, Elza, e a biológica, Cenira — já tinha sido faxineira, babá e trabalhado numa fábrica artesanal de sapatos. Elaine estava certa. As fichas evaporaram antes que chegasse a vez dela. A alternativa era se inscrever para auxiliar de produção. Foi o que ela fez.
Quando ingressou na Arezzo, aos 19, pensou ter realizado seu sonho. Como auxiliar, pipocava de função. Aprendeu a retirar cola dos sapatos — que grudava nas unhas longas — e costurar. Naquela época, finalizava o técnico contábil e precisava de 13 dias de estágio. Assim chegou à contabilidade da empresa, que vivia momento de expansão.
— Fui aprendendo, gostando e me identificando. Tudo se conectou e fiquei na contabilidade. Ninguém da minha família havia terminado o ensino médio. Eu tinha terminado e trabalhava num escritório. Estava realizada — lembra.
Veio de outra funcionária o encorajamento para que ingressasse na faculdade. Desacreditada, hesitou. A colega insistiu. Elaine foi incluída num programa da Arezzo para custear o curso, e se formou em ciências contábeis. No meio disso, casou e teve dois filhos: Júlia, hoje com 20, e Samuel, 25. Em 2011, quando a contabilidade foi concentrada em Campo Bom, no Vale do Sinos, já separada, com dois filhos crianças, teve receio de se transferir para longe.
— Foi um desafio grande vir para cá, só com eles, mas topei. Saímos de uma capital, para uma cidade menor, onde você não conhece ninguém, vive outra cultura. A gente teve que se adaptar — descreve.
No RS, Elaine foi promovida e hoje é gerente executiva contábil da unidade de calçados e bolsas do grupo Azzas 2154 — resultado da fusão entre a Arezzo&Co e o grupo Soma. Na empresa, foi a primeira com seu perfil a ocupar o cargo:
— Sou uma mulher, negra, de 50 anos. Quando cheguei nesse lugar, onde passaram tantos homens brancos, no início me sentia inibida. Com o tempo, fui aceita e aceitando estar naquele lugar. Entendi que esse lugar também me pertence.
Comigo vêm várias pessoas que acreditam e se inspiram. Estar em lugares que as pessoas não imaginam que poderiam.
ELAINE DOS ANJOS
Gerente executiva contábil
Elaine integrou as primeiras iniciativas voltadas à inclusão na companhia, e hoje está no Comitê de Diversidade. Em sua equipe, de 60 pessoas, tem duas gerentes, uma delas é uma mulher negra. No evento de aniversário de 52 anos da empresa em Campo Bom, Elaine foi uma das funcionárias que estiveram ao lado de Alexandre Birman, presidente da holding.
— Algumas pessoas falaram “gostei muito de te ver ali”. Comigo vêm várias pessoas que acreditam e se inspiram. Estar em lugares que as pessoas não imaginam que poderiam. A gente olha, mulheres no cargo de liderança, está avançando. Mas as pessoas ainda estranham. Quando começa a fazer interseccionalidades e pensa em mulher negra na liderança, é mais difícil. É uma jornada longa, que espero que seja cada vez mais forte.
“O gênero não nos define, só nos rotula”
Aos 12 anos, Mariana Silveira foi resgatada pelas mulheres ao seu redor. A menina curiosa, que adorava estudar, viu a vida estagnar com a perda precoce da mãe. A empregada doméstica Ana Maria da Silva não resistiu ao câncer. Deixou a única filha e o marido, o policial militar Rovani Silveira.
Mari não queria mais sair da casa onde vivia em Pelotas, no sul do RS, e perdeu o interesse em ir à escola. Avó, tia, madrinha, primas, e, mais tarde, a madrasta, que era professora, tornaram-se referências para a garota se reencontrar. Voltou a estudar, decidida a ingressar numa escola técnica. Enquanto os amigos passeavam e tomavam sorvete, mergulhava nos livros.
Da prova disputada, errou apenas duas questões. A rotina passou a se dividir entre estágios, o inglês onde era bolsista, o handebol e o curso técnico de química. Formou-se aos 18 anos, e concluiu ser o momento de se aventurar fora dali. Sonhava trabalhar numa grande metalúrgica.
Aos 20, desembarcou sozinha em Caxias do Sul, na Serra. Na Frasle Mobility, do grupo Randoncorp, empregou-se como operadora de prensa. Ainda almejava uma vaga no laboratório, que surgiu um ano e dez meses depois. Mas Mariana havia descoberto outras vocações.
— Estava encantada com o processo industrial. Descobri que gostava mais de gente do que de tubo de ensaio — brinca.
Mariana seguiu crescendo. Tornou-se preparadora de máquina, quando só havia mais uma mulher na função. Não existia banheiro feminino no setor — era preciso andar até o vestiário. Quando foi promovida, a orientadora, era a única mulher ocupando o cargo. Focada, passou a cursar administração. No meio disso, conheceu Cléver, apaixonou-se e engravidou. Ana Júlia, a Juju, nasceu há 10 anos, com intolerâncias alimentares. Os choros e as corridas ao médico passaram a ser constantes.
— Meus gestores foram sensíveis e entenderam o momento delicado. É importante ter pessoas nas organizações que tenham olhar humanizado. Muitas mulheres abrem mão da carreira porque não têm rede de apoio. Não passei por isso, porque tive apoio da organização e da família — pondera.
Quando a situação da filha se estabilizou, voltou a sonhar com cargos mais altos. A provocação veio de um gestor, que indagou por que ela não tentava ser líder.
— Não tem nenhuma mulher em cargo de liderança — respondeu.
— E por que não pode ser você?
Inquieta, Mariana passou a se preparar para a vaga. No mesmo período, surgiram na empresa os grupos de afinidade, focados em inclusão. Optou pelo de mulheres e, mais tarde, ingressou no Jornada Delas, voltado à aceleração da carreira feminina. Cerca de 400 funcionárias participam do programa atualmente.
— Foi um divisor de águas. Eram mulheres quebrando paradigmas. Quando maternei, amamentava a Juju dentro do carro. Hoje tem espaço na organização para isso. Foram conquistas que vieram com os grupos. Muitas vozes ouvidas — comemora.
Há um ano e oito meses, Mariana, mulher, preta, mãe, de origem humilde, tornou-se líder operacional na Randoncorp. Coordena 55 pessoas — 12 são mulheres. Viu nesse período saltar o número funcionárias líderes. No Jornada Delas, foi alçada à mentoria de três mulheres:
— O gênero não nos define, só nos rotula. É uma transformação cultural na prática. É sobre estarmos juntas, potencializado umas às outras, uma mulher apoiando a outra.
Para o futuro, Mariana espera ajudar a construir uma sociedade mais igualitária.
— E que a Juju não precise enfrentar tantas batalhas — reflete a mãe.
“Não dá para olhar o mundo por um único prisma”
Diogo Arruda, 37 anos, precisa varrer a memória no ímpeto de precisar quando foi apresentado à moda. Tem as lembranças da infância povoadas por retalhos de tecidos e roupas confeccionadas pela mãe. Mantinha os olhos atentos enquanto Rosane costurava. Aprendeu modelagem ainda pequeno, quando aquilo não era visto como “coisa de menino”. Filho do meio, de uma escadinha de três irmãos, orgulha-se de ter herdado a criatividade materna.
— Minha mãe tentou ter um negócio, num tempo em que mulher tinha que ficar em casa. Chegou num momento, ela teve que decidir por criar os filhos, e levou a confecção para casa. Costurava para minhas tias, que costuravam para minha avó, e eu vivia no meio dessa confusão. Nasci no meio do tecido. Não nasci nos grandes birôs de moda, minha mãe não é uma grande estilista. Mas nasci nesse lugar. Minha mãe batalhou muito. E foi sempre construindo a gente de uma forma feliz e criativa — revive o mineiro, de Belo Horizonte.
Muito antes de traçar carreira no varejo da moda, Diogo se aventurou por caminhos distintos. Assim que concluiu o ensino médio, cursou três semestres de Direito. Inspirava-se na trajetória do avô, advogado de ideias vanguardistas, enquanto, por outro lado, tentava se encaixar em padrões. Descobriu que a burocracia processual não era para ele. No anseio de se encontrar, cursou história da arte, filosofia e marketing. Apenas aos 22 anos, repleto de angústias, assumiu a orientação sexual, e recebeu da mãe um abraço afetuoso.
A partir daí apostou naquilo que considerava sua essência: a criatividade. Ingressou no mundo da moda pelo visual merchandising. No mercado de trabalho, o apoio não se replicou em todos os lugares.
— Esse senso de acolhimento para um homem gay naquela época não era tão forte. As oportunidades não eram tão iguais para todo mundo. Quando vim para a Renner, as coisas começaram a acontecer. Tive pessoas que me deram oportunidade, e consegui ter mais voz — diz, sentado junto à mesa onde mergulha nas criações para as quatro marcas do grupo.
No meu time brigo para ter pessoas gays, trans, pretas, gordas. Isso é um propósito. Aqui, consegui contribuir na carreira delas, assim como outras já contribuíram na minha. Hoje trabalho num ambiente que considero diverso sob vários olhares, e tenho apoio da empresa
DIOGO ARRUDA
Gerente de marketing, conteúdo e branding
O mineiro chegou a Porto Alegre há oito anos, onde mais tarde comandaria a gerência do marketing, conteúdo e branding (estratégia de gestão de marcas). Quando se concentra para criar, Diogo é bastante concentrado, e reflete um tanto do garoto tímido e estudioso que foi um dia.
Equilibra isso com aprendizados vividos numa casa colorida, repleta de plantas e gente, onde corria com os irmãos e primos pelo quintal. Regularmente vai a Minas Gerais visitar a família, incluindo os três cães, Rague, Paçoca e Tiquinho, na casa da mãe. A rotina de adulto é agitada, com viagens de trabalho frequentes.
Na sala onde produz as criações, um painel reúne inspirações para campanhas, com perfis diversos. Uma das marcas com as quais trabalha é especializada em moda plus size. Diogo acompanha toda a produção dos editoriais:
— São mulheres potentes, com histórias incríveis. E a cada set com elas, vou aprendendo. Não aprendi isso num livro. Não dá para olhar o mundo por um único prisma.
Diogo busca replicar a diversidade encontrada nos conteúdos também entre aqueles que estão em sua equipe. Atualmente, lidera um grupo de 16 pessoas.
— No meu time brigo para ter pessoas gays, trans, pretas, gordas. Isso é um propósito. Aqui, consegui contribuir na carreira delas, assim como outras já contribuíram na minha. Hoje trabalho num ambiente que considero diverso sob vários olhares, e tenho apoio da empresa. A Renner abraça isso e briga por isso todos os dias — comemora.
* Das 1.100 maiores empresas e instituições financeiras brasileiras, 131 participaram do estudo, segundo o Instituto Ethos.