O Rio Grande do Sul ferveu por três anos seguidos de seca e altas temperaturas. Quando pareceu que seria brindado por uma trégua do tempo, foi varrido por ventanias e submergiu em sucessivas inundações provocadas por tempestades de proporções e impactos históricos que transformaram 2023 em um símbolo do “novo normal” climático. Três episódios especialmente violentos de temporais deixaram mais de 70 vítimas, espalharam destruição e revelaram a necessidade de melhorias nos sistemas de prevenção e de alertas contra desastres naturais.
Para meteorologistas e climatologistas, as cheias foram agravadas pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico (o chamado El Niño) e do Atlântico Sul, mas também tiveram relação com as mudanças do clima global. Um relatório da Organização Meteorológica Mundial divulgado no final de novembro confirmou que 2023 foi o mais quente já registrado no planeta, escaldado por uma temperatura média 1,4ºC acima da era pré-industrial. A expectativa é de que a umidade retorne a padrões mais razoáveis no Estado apenas com o enfraquecimento do El Niño, ao final do primeiro trimestre de 2024.
– Em 2023, houve um aquecimento das águas superficiais do Atlântico Sul, que ficaram cerca de 3ºC além do normal. Isso forneceu combustível para um maior número de ciclones extratropicais, que se formaram próximos da costa. Tivemos ainda a formação do El Niño, que faz com que a passagem das frentes frias seja mais lenta e chova mais por aqui. Provavelmente, isso se associou a um cenário global de mudanças climáticas, só não conseguimos quantificar com precisão o que é variabilidade natural e o que é resultado da ação humana – afirma a meteorologista Eliana Klering, integrante do Laboratório de Climatologia Aplicada e professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Em junho, um desses ciclones provocou a morte de 16 pessoas no Litoral Norte, na Região Metropolitana e no Vale do Caí, após serem arrastadas pela água ou cobertas por deslizamentos de terra. O mau tempo atingiu com mais força a cidade de Caraá, no Litoral, onde deixou cinco vítimas e tirou de casa 3 mil moradores. Mas a maior tragédia do ano começaria a se desenhar na noite de 1º de setembro, quando as primeiras gotas de um volume histórico de chuva concentrada em poucos dias passaram a cair sobre regiões de cabeceira dos rios Taquari e das Antas, na metade norte do Estado. No município de André da Rocha, a precipitação somaria 382mm em 48 horas – mais do que o dobro do previsto para o mês inteiro. Em Passo Fundo, as estações meteorológicas registraram um nível recorde de chuva em 24 horas para o mês de setembro desde o início das medições, em 1913: foi despejado o equivalente a 164 litros de água por metro quadrado no intervalo de apenas um dia.
Esse aguaceiro escorreu em direção aos córregos e riachos da região, que deságuam no eixo Taquari-Antas. No final da tarde do dia 4, um borbotão revolto e ruidoso já corria pelas margens estreitas e íngremes do Rio das Antas e cruzava a barragem da Hidrelétrica Castro Alves, em Nova Roma do Sul, em um volume 60 vezes acima do normal. Em seguida, levaria de arrasto pontes, estradas e casas inteiras em cidades do Vale do Taquari como Muçum e Roca Sales. Pelo menos 52 pessoas morreram em razão da enxurrada.
Quando os gaúchos ainda choravam seus mortos e lutavam para se reerguer, foram novamente castigados. Volumes incomuns de chuva voltaram a atingir principalmente a Metade Norte e provocaram mais uma onda de destruição, com saldo de cinco mortos e transtornos nos vales do Taquari, do Caí e nas regiões Metropolitana e Serra, entre outros pontos. A Capital observou a maior cheia do Guaíba desde a célebre enchente de 1941, quando a água atingira 4m75cm acima de seu nível usual. Desta vez, as réguas mediram 3m46cm – as comportas do sistema de contenção precisaram ser fechadas pela segunda vez em menos de três meses, mas não evitaram alagamentos em pontos das zonas Sul, Centro e Norte.
Passada a torrente de chuva e sofrimento, restaram importantes lições para a sociedade. Na avaliação de especialistas, o novo cenário climático, que deve manter maiores frequência e intensidade de fenômenos extremos, exige a adoção de medidas preventivas e de respostas mais eficientes. Um dos primeiros passos é apontar com clareza as áreas dos municípios mais suscetíveis a inundações, empregar instrumentos como o Plano Diretor para evitar o uso desses terrenos para moradia, transferir moradores quando necessário ou, pelo menos, estimular adaptações construtivas como casas mais elevadas.
Isso é seguidamente desconsiderado: um levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) com dados de 2021 mostra que, dos 1.580 municípios brasileiros incluídos no cadastro nacional de risco (listagem das cidades mais suscetíveis a ameaças naturais), 54% não tinham Plano Municipal de Redução de Risco e 30% não contavam com Plano Diretor. Outras ações consideradas fundamentais são melhorias nos sistemas de aviso, que podem envolver sirenes ou mensagens de celular com tempo suficiente para permitir evacuações, reforço nas equipes de Defesa Civil e no financiamento de ações de prevenção. Um outro estudo da CNM revela que desastres naturais provocaram prejuízos superiores a R$ 400 bilhões no país em 10 anos, período em que a União reservou apenas R$ 4,9 bilhões para gestão de riscos.
A instalação de um gabinete estadual de crise, anunciada pelo Piratini após a tragédia de setembro, ainda não havia se concretizado até as enchentes de novembro. A Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura argumentou que, apesar disso, ações relativas a esse órgão já estavam em andamento.
As previsões indicam que, pelo menos sob o ponto de vista climático, 2023 vai se estender além do tempo determinado pelo calendário. O fenômeno El Niño deverá se manter ao longo do verão e ter alguma influência nos primeiros meses de 2024. Mas o meteorologista Flavio Varone, coordenador do Sistema de Monitoramento e Alertas Agroclimáticos (Simagro) da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural do Estado sustenta que os efeitos devem ser menos severos do que o visto nos últimos meses:
– Ao que tudo indica, teremos o El Niño durante boa parte do primeiro semestre, mas não da forma catastrófica como vimos em 2023, que foi um ano muito atípico. Deverá seguir trazendo um pouco mais de chuva, com impactos mais isolados. Ao longo do semestre, vai perdendo força até entrarmos em um período de neutralidade.
A meteorologista e professora da UFPel Eliana Klering acredita que o aquecimento do pacífico se mantém no primeiro trimestre e vai perdendo força progressivamente ao final do verão. Flavio Varone sustenta que algumas previsões indicam possibilidade de formação de um La Niña (resfriamento do Pacífico, associado a estiagens no sul do Brasil) ainda em 2024, mas o meteorologista considera que ainda é arriscado apostar nisso.
– Ainda é muito cedo para falar em La Niña, esse tipo de previsão é complexo. Quando ela surgiu pela última vez, se achava que duraria apenas seis meses, e acabou durando três anos – lembra Varone.
2023 foi
- O ano mais quente já registrado no planeta, segundo a Organização Meteorológica Mundial.
2024 será
- Eventos extremos no primeiro semestre, mas não tão extremos quanto os de 2023, segundo especialistas do clima.