“Enchentes ameaçam o Interior”, “Rio Uruguai sobe mais e assusta”, “Chuvas castigam Fronteira e Zona Sul”. Essas manchetes não causariam estranheza se tivessem sido lidas nas capas de Zero Hora no segundo semestre deste ano, período em que o Rio Grande do Sul sofre as consequências do El Niño. Porém, as chamadas são de edições (veja abaixo) de períodos em que o tempo no Estado foi influenciado pela versão mais intensa do fenômeno, conhecida como "super" El Niño entre os de 1982 e 1983, 1997 e 1998 e 2015 e 2016.
Os fenômenos observados nesses períodos foram os que causaram maior elevação da temperatura do Oceano Pacífico equatorial, o que caracteriza o El Niño. Os dados são da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (ou National Oceanic and Atmospheric Administration, NOAA, em inglês) que começou a estudar os efeitos da condição oceânica-atmosférica em 1950; veja os dados neste link.
Ainda que tenha causado chuva anormal no RS nos últimos meses, o El Niño deste ano não deverá se equiparar às condições dos três considerados mais intensos, dizem meteorologistas.
Veja como Zero Hora noticiou as três ocorrências:
El Niño entre 1982 e 1983
Em fevereiro de 1983, ZH contabilizou seis mortos em todo o Estado; Pedro Osório foi citado como o município mais atingido. Nas edições do jornal, os danos foram contabilizados em todo RS: Bagé, Capão do Leão, Dom Pedrito, Lavras do Sul e Pelotas tiveram prejuízos. Em municípios da Fronteira Oeste foi reportada enchente que fez com que o transporte ferroviário de cargas fosse suspenso. Além do RS, em maio de 1983, foram noticiadas enxurradas em Santa Catarina, Paraná, Paraguai e Argentina. O Executivo gaúcho buscava ajuda do governo federal para a reconstrução dos municípios atingidos. O fenômeno não é nomeado em nenhuma das capas (leia a explicação no fim da reportagem).
El Niño entre 1997 e 1998
Nesse período, o jornal utilizou o termo “El Niño” na cobertura das enchentes. Uma capa de agosto de 1997 trazia a seguinte previsão: entre setembro e dezembro, “o fenômeno El Niño deverá fustigar o Estado com chuvas mais intensas que as registradas na década de 80”. Em outubro, enquanto um furacão no México deixava mais de 120 mortos, no Estado, o El Niño provocava raios, chuvarada e granizo, “com grandes prejuízos às lavouras”.
Em setembro, foram relatados episódios intensos de vento, chuva e granizo em todo o RS, o que causou queda de torres de energia elétrica e destelhamento. “Da Indonésia ao Rio Grande do Sul, o fenômeno El Niño semeia enchentes, furacões e secas”, disse uma manchete de outubro de 1997.
El Niño entre 2015 e 2016
O último super El Niño causou danos no Estado a partir do segundo semestre de 2015. Em 13 de outubro, o jornal informa que aquela era a maior enchente desde 1941: o Guaíba subiu 2m89cm e obrigou ao fechamento das 14 comportas do Muro da Mauá para evitar que a água avançasse sobre as ruas centrais de Porto Alegre.
Em Alegrete havia mais de 250 famílias desabrigadas por conta da chuva que elevou o nível do Rio Ibirapuitã, em dezembro de 2015. Dias depois, imagens aéreas da freeway, principal saída de Porto Alegre, “impressionam em função do acúmulo e do avanço da água”, cita o jornal. “Porto Alegre amanheceu em choque no sábado”, estampou a capa em 30 de janeiro de 2016. Chuva forte e vento “espalharam pânico e destruição” no dia anterior.
O que é o El Niño
O El Niño é o aquecimento anormal do Oceano Pacífico equatorial que ocorre em intervalos que variam de dois a sete anos. Ele é classificado conforme a temperatura da água: é fraco quando aumenta entre 0,5ºC e 0,9ºC da média, moderado entre 1ºC e 1,5ºC e forte acima de 1,5ºC, segundo a classificação da NOAA.
A definição de “super” El Niño varia entre estudiosos, mas é comum que seja assim definido quando a temperatura fica acima de 2ºC por ao menos cinco trimestres móveis consecutivos.
— O conceito de “super El Niño” surgiu para falar desses eventos de aquecimento absurdo das águas na região do Oceano Pacífico equatorial. Nesses três períodos (1982/1983, 1997/1998 e 2015/2016), vimos anomalias de temperatura, ou seja, aquecimento de mais de 2ºC acima da média esperada na superfície do oceano — resume Murilo Lopes, meteorologista da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Na cobertura feita por Zero Hora do El Niño de 1982/1983, o fenômeno não é nomeado como fator originário de enchentes registradas em municípios gaúchos, em Santa Catarina, na Argentina e no Paraguai. Segundo o meteorologista, isso ocorreu porque, à época, o estudo do fenômeno era incipiente e a definição pouco conhecida na sociedade.
— A documentação científica do fenômeno ocorreu após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando tivemos um “boom” da meteorologia como um todo, com o uso de novas ferramentas e tecnologias. Então, quando ocorreu o evento da década de 1980, isso o estudo era recente e não havia o contato tão próximo (dos jornalistas) com a academia a ponto de se utilizar esse jargão na época — explica Murilo Lopes.
Segundo a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos, há 30% de chance de o fenômeno deste ano “rivalizar” com os dos 1997/1998 e 2015/2016, quando a temperatura média do Oceano Pacífico equatorial chegou a 2°C acima do normal.
— A maioria dos modelos climáticos indica que a temperatura do oceano deverá se aproximar dos 2ºC acima da climatologia. Por isso, a maior probabilidade é que ocorra um El Niño forte, mas que não alcance o patamar de temperatura de um super El Niño — projeta o meteorologista da UFSM.
Intensidade tem a ver com destruição
Douglas Lindemann, meteorologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), endossa o entendimento de que um super El Niño como os do passado ainda é uma possibilidade remota nos próximos meses. Isso, de certo modo, pode ser entendido como positivo, se considerados possíveis impactos nos municípios gaúchos.
— É mais provável que tenhamos problemas de desastres ambientais causados em anos de El Niño: chuva forte, queda de granizo, tempestades. Notamos que a destruição está associada à intensidade do fenômeno — diz Lindemann.
O especialista diz que a estimativa atual é que o fenômeno ganhe força até janeiro de 2024 e seja classificado como forte. A partir desse momento, ele perderá intensidade aos poucos até o início do outono, o que deverá normalizar o tempo global. Lindemann, porém, acrescenta que o fenômeno não pode ser retirado do contexto de outras eventos meteorológicos que podem impulsionar episódios extremos até o verão.
— Temos que ver como está a temperatura da água do Oceano Atlântico, a formação e passagem de sistemas frontais oriundos do Hemisfério Sul, próximo à Antártica, assim como está a entrada de umidade da Amazônia. É um conjunto de fatores. É claro que, quanto mais forte for o El Niño, maior será a atuação dele sobre esses fenômenos — explica.