A passagem do ciclone extratropical pelo Rio Grande do Sul motiva um questionamento para o futuro: como evitar mortes e reduzir o prejuízo material quando outro evento climático atingir o Estado? A dúvida ocorre dias após o fenômeno ter causado 16 óbitos, destruído municípios e afetado mais de 2 milhões de pessoas, no que é considerada a enxurrada que mais causou perdas de vidas humanas em décadas recentes no RS.
Para o curto prazo, o governo estadual diz que reforçará o apoio às defesas civis municipais. Essa é a mesma ideia da prefeitura de Porto Alegre, que planeja contratar mais servidores e defende maior integração entre municípios como uma via.
Estudiosos dizem que soluções de médio e longo prazo para reduzir os impactos dos fenômenos climáticos devem ter como base a educação ambiental e a informação qualificada à sociedade. A discussão é feita em um período em que há previsão de chuva acima da média devido à atuação do fenômeno El Niño no Rio Grande do Sul, principalmente em setembro, conforme a Climatempo.
Um exemplo em Porto Alegre
Foi a partir do Centro Integrado de Comando (Ceic) que a administração pública de Porto Alegre comandou as ações durante os momentos mais críticos da passagem do ciclone. Vinculado à Secretaria Municipal de Segurança (SMSEG), o Ceic gerencia 2,3 mil câmeras de videomonitoramento internas e externas espalhadas pela Capital, normalmente utilizada para coibir ações criminosas.
Inspirado nos centros dos Estados Unidos, o local serve como palco para decisões e de análises para as ações. Há 12 Ceics estaduais no país, todos conectados com o existente em Brasília. No dia do ciclone, 10 secretarias e órgãos municipais trabalhavam na chamada Sala de Situação, onde a reportagem de GZH esteve na sexta-feira (16), para acompanhar as operações e os chamados.
— Quando começou a chuva, nós nos deslocamos para o centro de comando. Fizemos uma reunião, todos os secretários falaram e passamos a tomar decisões. As demandas vinham e rapidamente mobilizávamos equipes e servidores. Os bombeiros e a Defesa Civil estadual estavam na mesa, ou seja, como uma governança, que deu conta de responder (à situação)— diz Sebastião Melo, prefeito de Porto Alegre.
Essa integração é defendida pelo prefeito como uma solução para prevenir e atuar em desastres, que sugere que municípios da Região Metropolitana se unam para a aquisição de estações e radares meteorológicos. Além disso, Melo diz que a prefeitura planeja agregar 30 servidores para a Defesa Civil da Capital; atualmente, o órgão tem 15.
— Queremos dar vida própria para a Defesa Civil. Hoje nós nos socorremos com servidores de outras secretarias em situações como essa (o ciclone). Precisamos ter um quadro permanente e qualificado para esse tema — acrescenta.
O que é jornalismo de soluções, presente nessa reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Preparação para o pior cenário
Para Venisse Schossler, doutora em Geociências e pesquisadora do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), prevenir e mitigar efeitos dos eventos climáticos implica qualificar o acesso à informação. Segundo ela, em geral, a população tem conhecimento de que desastres podem ocorrer, em especial por meio de notícias da imprensa tradicional. O problema é o que se faz com os alertas.
— Sempre vemos gente que diz “isso (desastre) não vai acontecer no meu município, não vai acontecer na minha casa”. É uma questão de apego à residência, às coisas que estão dentro dela. Isso passa pela falta de educação ambiental. Essas pessoas precisam receber informação, precisam ser educadas a respeito disso — diz Venisse.
George Ulguim Pedra, meteorologista e analista de dados hidroclimáticos na Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), diz que, por vezes, a sociedade brasileira não consegue compreender o que é uma situação de risco por conta da falta conhecimentos básicos.
— Em geral, o pessoal não acredita que 20 milímetros de chuva sejam prejudiciais, mas em uma cidade que não tem escoamento fluvial, isso é o suficiente para causar estragos. No caso do ciclone, que foram mais de 200 milímetros, a sociedade não identificou que a população deveria ser deslocada — comenta.
E educar sobre o tema é uma tarefa que demanda tempo. Isso porque, conforme a especialista da UFRGS, a disseminação de discursos anticiência – cita a negação das mudanças climáticas – fazem que a discussão de longo prazo fique à parte, pois cientistas da área, que alertam sobre eventos climáticos sejam, por vezes, desacreditados e não ouvidos no debate.
— A todo o momento se fala em mudança ambiental e climática na mídia. A pergunta é: as pessoas estão preparadas para receber essa informação? Elas querem ouvir ou estão em um processo de negação, de dizer que não é verdade, que é alarme. A negação às mudanças climáticas e a negação do fato da intensificação de eventos extremos também mata — acrescenta Venisse Schossler.
George Ulguim Pedra agrega que a ciência tem “feito sua parte”: há anos alerta para as mudanças do clima, além de ser capaz de informar, com antecedência, cenários passíveis de perigo à sociedade:
— Temos vários relatórios científicos indicando que chuvas ficarão mais fortes, invernos ficarão mais rigorosos e verões terão temperaturas mais elevadas. Só podemos nos preparar para isso, não esperar que esses eventos ocorram, mas antecipá-los. Aí entra a questão de a sociedade civil e o poder público responderem o que foi apontado pela academia.
Investimento nas defesas civis
Além do problema de informação, outra barreira é encontrada na mitigação das consequências de fenômenos climáticos: um modelo permanente para enfrentar situações de desastre. Ainda que exista trabalho público quando da ocorrência de desastres – a atuação da Defesa Civil é exemplo – faltam iniciativas para auxiliar os atingidos.
— Em algumas localidades, a Defesa Civil ou o órgão responsável pela remoção das pessoas não têm equipamentos. Existem cidades no Rio Grande do Sul que são atendidas por uma viatura, uma equipe. No curto prazo, isso dificulta bastante resolver esse problema — diz Pedra, do Inpe.
A negação às mudanças climáticas e a negação do fato da intensificação de eventos extremos também mata.
VENISSE SCHOSSLER
Doutora em Geociências e pesquisadora do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
A escassez de recursos humanos foi atestada na pesquisa Diagnóstico de capacidades e necessidades municipais em Proteção e Defesa Civil, publicada pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, em 2021. Nos municípios da Região Sul – o que inclui 161 prefeituras gaúchas –, apenas 33% das defesas civis têm orçamento próprio, 15% dependem das transferências de outras secretarias e 4% dispõem de emendas parlamentares. A demanda também está na pauta do Executivo estadual, afirma Gabriel Souza, vice-governador.
— Vamos intensificar o oferecimento de qualificações aos servidores municipais para assessorá-los tecnicamente, no sentido de organizar planos de contingência. Isso cabe também aos municípios. As prefeituras pequenas não têm estrutura para manter uma defesa civil do tamanho das cidades maiores, porque, felizmente, na maior parte do tempo, não acontece nenhum evento que seja necessária essa atuação — pontua.
O vice-governador diz que uma dificuldade encontrada durante o atendimento das consequências do ciclone foi a falta de conscientização de moradores que não seguiram orientações oficiais para abandonar pontos críticos durante a atuação do ciclone no RS. Essa resistência, segundo ele, inviabiliza qualquer logística preparada para o socorro:
— Tivemos muitos casos de pessoas que quiseram ficar nas suas residências, mesmo com o resgate chegando para tirá-las. Algumas não quiseram sair porque achavam que tinham que ficar em casa por algum motivo, porque já ia baixar a água ou porque tinham medo de saque.
O cenário relatado pelo vice-governador tem origem na falta de um planejamento eficaz para situações de desastre, contrapõe Venisse Schossler:
— Muitas pessoas não saem de casa porque não têm segurança de que vão ter um lugar para morar. Isso faz parte do planejamento de todas as esferas do poder público para dar amparo, principalmente financeiro. É preciso um projeto de redução de risco a desastres mitigador de verdade, ou seja, que faça com que as pessoas se sintam seguras para sair de casa e deixar tudo para trás.
Problemas comuns identificados
Ao longo de 17 anos, entre 2003 e 2021, o Rio Grande do Sul registrou 4.230 ocorrências de desastres naturais – estão incluídos aí fenômenos extremos ou intensos que causam danos que excedem a capacidade de a comunidade atingida conviver com o impacto. É o que diz um estudo produzido pelo governo estadual. Entre 2017 a 2021, por exemplo, 4,44 milhões de pessoas em 482 dos 497 municípios do Estado foram afetadas por estes eventos naturais.
— É importante que os municípios construam planos integrados de gestão de riscos e desastres. Vimos a bacia hidrográfica do Rio dos Sinos, por exemplo, com muitos municípios sendo afetados (no ciclone), inclusive alguns recebendo efeitos das chuvas que aconteceram em outros locais. Esses planos são fundamentais para planejar ações futuras: um evento extremo não respeita o limite político do município — afirma Danielle Martins, doutora em gestão de risco de desastres e coordenadora do Laboratório de Vulnerabilidades, Riscos e Sociedade (LaVuRS) da Universidade Feevale.
Um evento extremo não respeita o limite político do município
DANIELLE MARTINS
Coordenadora do Laboratório de Vulnerabilidades, Riscos e Sociedades da Feevale
Inundações e enxurradas também entram nessa conta. A primeira, que é quando a precipitação supera a capacidade de infiltração do solo, teve registos em 133 municípios, conforme o estudo.
As enxurradas, caracterizadas pelo grande volume de chuvas que afetam o escoamento dos rios e têm alto poder destrutivo, tiveram ocorrências em 324 municípios gaúchos entre 2003 e 2021.
— Nossas cidades foram construídas se amparando em uma infraestrutura cinza, com a canalização de rios, com a impermeabilização do solo. Uma medida importante é investir em soluções baseadas na natureza, em mecanismos que simulam banhados, locais que vão ajudar a reter a água, como jardins de chuvas, por exemplo. Essas são estruturas urbanas que contribuem para a melhoria da drenagem — pontua a professora da Feevale.
*Colaborou André Malinoski