Uma legislação estadual de gestão de desastres naturais poderia ter ajudado o Rio Grande do Sul a prevenir, mitigar e evitar tragédias como as registradas no Estado neste ano, dizem especialistas consultados pela reportagem.
A referência é a um anteprojeto feito pelo governo de José Ivo Sartori, conduzido com o objetivo de embasar um projeto de lei. Seis anos depois de concluído, o governo estadual não deu andamento ao processo, conforme apurou GZH nesta reportagem. Entre as propostas estavam a capacitação permanente de agentes públicos para atuação em situações de risco, ações preventivas, inclusão dos princípios da gestão de desastres nos currículos escolares e fontes de financiamento.
Fernando Meirelles, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), participou da elaboração do anteprojeto na função de diretor de Recursos Hídricos da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema).
Ele conta que o objetivo do trabalho foi o de construir um sistema que colocasse o Estado em sintonia com o Marco de Sendai, documento internacional adotado pelos estados-membros das Nações Unidas (ONU) em 2015. O acordo da entidade global visava a redução do risco de desastres nos territórios dos signatários, entre eles, o Brasil.
— Ele (o anteprojeto) tinha uma arquitetura para estabelecer as responsabilidades de cada um dos entes do Estado, o que não temos hoje. Era um sistema de informações que estabelecia um programa de apoio e incentivo econômico à redução de risco de desastres, definia planos municipais de proteção, de defesa civil, organizava e aumentava a eficiência do sistema — resume o professor universitário.
Outro fator elogiado por Meirelles na iniciativa é que a legislação queria dar atribuições permanentes aos agentes públicos, ou seja, definir uma política de Estado que não dependesse da administração que estivesse à frente do Executivo. Essa "perenidade" no cuidado com a gestão de riscos poderia ter influenciado, de forma positiva, o enfrentamento às enchentes observadas no RS em setembro, conclui Meirelles:
Se a lei tivesse sido estabelecida, teríamos outra estrutura de resposta, o que teria reduzido, sim, os efeitos desse evento (as fortes chuvas em setembro).
FERNANDO MEIRELLES
professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS
— A eficiência do processo pode se perder quando há alterações de governo. Se a lei tivesse sido estabelecida, teríamos outra estrutura de resposta, o que teria reduzido, sim, os efeitos desse evento (as fortes chuvas em setembro).
Para o professor, não haveria problema no uso do anteprojeto caso o governo Leite quisesse aproveitar o estudo feito na gestão Sartori.
— Não vejo que a sociedade gaúcha tenha mudado de 2016 (quando o estudo foi feito) para cá em termos de compreensão do seu papel. Penso que está totalmente atualizado — opina o docente da UFRGS.
Evacuação de locais de risco
Cássio Wollmann, geógrafo e responsável pelo Laboratório de Climatologia em Ambientes Subtropicais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), também diz acreditar que o estabelecimento da legislação no passado poderia ter minimizado os impactos das enchentes nos municípios gaúchos neste ano.
— Uma vez implementada, a política pública tem mecanismos para, aos poucos, buscar ações e soluções para o problema. Ela não teria diminuído os efeitos, as consequências materiais (da chuva), mas as mortes poderiam ter sido evitadas, sim. Uma enchente é um fenômeno que pode ser previsto com muita antecedência: é inadmissível pessoas morrerem por conta disso em pleno 2023 — pontua.
Ou seja, para Wollmann, o Estado perdeu a oportunidade de ter uma ferramenta capaz de ser a base para o desenvolvimento de mecanismos preventivos, a partir de investimentos previstos pelo desenvolvimento da lei. Ele diz acreditar que um trabalho de evacuação de áreas com potencial de risco de desastres é um exemplo de um possível desdobramento da evolução da norma.
— O Brasil não tem um sistema de evacuação. Uma das ações de políticas públicas é a criação de rotas de fuga, com placas alertando para que lado a população tem que se abrigar, com sirenes, algo para ser ensinado nas escolas. Isso é comum no Japão, nos Estados Unidos, em vários países que têm esse tipo de problema. Com certeza a política pública poderia ter ajudado a mitigar o impacto (da chuva) — argumenta.
O professor da UFSM diz que o esboço de política feito na gestão Sartori deveria ser revisto em uma hipotética utilização, pois o texto, para ele, foi pensado em cenário político e momento climático distintos aos que os gaúchos vivem atualmente.
Foco na antecipação
Fernando Nogueira, geólogo especialista em gestão de riscos e desastres e professor da Universidade Federal do ABC, em Santo André (SP), diz que a legislação precisa acompanhar as alterações exigidas por conta das emergências climáticas. Para ele, a lei é importante para guiar as decisões da sociedade, mas as ações efetivas precisam ganhar protagonismo.
Uma enchente é um fenômeno que pode ser previsto com muita antecedência: é inadmissível pessoas morrerem por conta disso em pleno 2023
CÁSSIO WOLLMANN
Geógrafo e professora da UFSM
— Não dá para ter a prática que tem se consolidado nos organismos de proteção e defesa civil: acompanhar pelo computador a evolução da cena e atender o desastre depois que ele acontece. Precisamos mudar isso para práticas antecipatórias, de autodefesa, de organização institucional para antecipar desastres com procedimentos — afirma.
Para que isso ocorra, o professor ressalta, não bastam apenas legislação e investimentos, ainda que sejam importantes no debate. O principal escudo para o enfrentamento aos perigos associados às mudanças climáticas é o fortalecimento da comunicação: os agentes públicos precisam fazer com que informações sejam acessíveis à sociedade. Nogueira cita a própria atuação como servidor da prefeitura de Santos, no litoral de São Paulo, em áreas de risco na década de 1990:
— Nós sabíamos onde estavam as casas com maior risco. Quando chegava perto de 100 milímetros de chuva, íamos nesses locais e chamávamos as pessoas para ficarem fora de suas casas. Isso evitava que muitos morressem. Esse tipo de procedimento, que parece simples, passou a ser essencial hoje em dia. Emergências como essa no Rio Grande do Sul vão acontecer novamente. Ou seja, é fundamental que todos comecem a planejar ações adaptativas a esses extremos climáticos. Não adianta colocar a culpa no excesso de chuva que não estava previsto.