"Dotar o Estado do Rio Grande do Sul de uma política de gestão de risco de desastres atualizada." Essa é a justificativa de um estudo concluído em 2017 pela gestão de José Ivo Sartori. Seis anos depois, o propósito do investimento, de R$ 670 mil em valores da época, não foi alcançado: o Estado segue sem a legislação, conforme apurou GZH.
O trabalho é um anteprojeto de lei, ou seja, um levantamento que serve de base para um projeto de lei. O estudo conduzido — que pode ser acessado neste link — pelo Executivo embasaria uma inédita política estadual para preparar agentes públicos e sociedade civil para o gerenciamento de situações causadas por eventos climáticos. No entanto, o texto nunca foi levado para discussão na Assembleia Legislativa, rito necessário para a criação de uma legislação. O anteprojeto foi feito com recursos de um financiamento do Banco Mundial.
Ana Pellini, titular da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) do governo Sartori, disse que a norma não foi efetivada porque faltou tempo para terminar a proposta e apresentá-la aos deputados. A gestão Eduardo Leite (PSDB) afirma que o anteprojeto não foi desperdiçado, pois a administração assegura que utiliza princípios do estudo. Além disso, o governo estadual garante que analisará o anteprojeto e a possibilidade de usá-lo como parte de uma lei própria.
Entre as propostas do anteprojeto estavam a capacitação permanente de agentes públicos, ações preventivas, inclusão dos princípios da gestão de desastres nos currículos escolares e fontes de financiamento.
Não ter efetivado a lei significa o desperdício de uma ferramenta que poderia ajudar a prevenir, mitigar e evitar tragédias climáticas como as registradas no Estado neste ano, dizem especialistas ouvidos pela reportagem (confira neste link).
Investimento com recurso do Banco Mundial
Em um contrato assinado em 2015, o governo Sartori utilizou R$ 670 mil para contratar a empresa Codex Remote, que fez o estudo técnico do anteprojeto. Parte do recurso veio de um financiamento obtido junto ao Banco Mundial em 2012 no Programa de Apoio à Retomada do Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (Proredes), durante a administração de Tarso Genro (PT).
No total, a parceria rendeu um financiamento de US$ 480 milhões (cerca de R$ 975 milhões em 2012), para ser investido em diversas áreas. A criação da legislação foi um dos três itens que tratam da gestão de riscos de desastres previstos no contrato original com o Banco Mundial, que, juntos, somavam US$ 3,5 milhões (R$ 7,1 milhões em 2012). O contrato com a instituição financeira tem duração até 2041, ano previsto para encerrar o pagamento da dívida.
O contrato determinava que o Estado criasse uma comissão para elaborar "um plano participativo de gestão de risco de desastres e formular a política e os mecanismos institucionais para sua implementação".
Isso porque, esclarece o material, "as ações do conjunto de órgãos estaduais ainda não se dão de forma articulada e integrada, e o Estado carece de um sistema legislativo capaz de articular ações entre os órgãos da administração pública estadual, com instituições federais e municipais, bem como em relação às entidades da sociedade civil, para desenvolver de forma plena a gestão de risco de desastres".
Portanto, a futura norma alterava a forma como o RS enfrentaria eventos climáticos, como enchentes, vendavais e estiagem.
Faltou tempo, justifica governo Sartori
A discussão para elaborar o anteprojeto teve, em 2016, reuniões em Porto Alegre, Passo Fundo, Pelotas, Caxias do Sul, Uruguaiana e Santa Maria, nas quais foram recebidas autoridades do poder público e a sociedade civil, que contribuíram para o escopo das informações do levantamento.
O recurso ficou sob responsabilidade da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) e deveria integrar o denominado Sistema Estadual de Gestão de Riscos de Desastres. Além do anteprojeto, com o financiamento, o RS teve fundos para criar um sistema de informação e monitoramento para identificar risco de desastres e oferecer alertas antecipados, além de uma sala de situação "para melhorar a tomada de decisões e a coordenação durante emergências".
Ana Pellini, titular da Sema durante o governo Sartori, explica que o anteprojeto não foi apresentado aos deputados porque a pasta, à época, decidiu aperfeiçoar o estudo técnico antes de levá-lo para apreciação.
— Não era simplesmente mandar (o anteprojeto) para a Assembleia: ele era tecnicamente perfeito, mas precisávamos conversar com todos os envolvidos para tornar aquilo praticável. Estávamos nessa etapa quando terminou o governo. Não foi mandado (para votação) porque não estava pronto — resume.
Não era simplesmente mandar (o anteprojeto) para a Assembleia: ele era tecnicamente perfeito, mas precisávamos conversar com todos os envolvidos para tornar aquilo praticável.
ANA PELLINI
Secretária da Sema durante o governo Sartori
A ex-secretária da Sema assegura que os recursos do Banco Mundial foram aplicados conforme previsto no contrato e que muniram o Estado com equipamentos utilizados pelos agentes públicos na gestão de desastres naturais. Com o recurso, segundo ela, a gestão adquiriu estações hidrometeorológicas — para mensurar o volume de chuvas e nível e a vazão dos rios — e construiu a Sala de Situação da Sema.
Ana Pellini acrescenta que o corpo técnico da secretaria também foi qualificado na gestão Sartori com a realização de um concurso público.
— Ter lei é bom, todo mundo tem clareza de sua incumbência, mas não é imprescindível. Posso garantir que havia uma grande preocupação com isso (o enfrentamento aos desastres naturais) naquela época. Penso que o governo fez o melhor que conseguiu dentro do que tinha de equipamentos, de tecnologia, de possibilidades — justifica.
Governo Leite diz que princípios do anteprojeto são utilizados
Em 2019, Eduardo Leite, atual governador, conseguiu prorrogar o prazo para uso do recurso do Banco Mundial em 90 dias: entre as medidas, Leite cita a conclusão do Sistema Estadual de Gestão Integrada de Riscos e Desastres no valor de R$ 1,6 milhão, previsto no contrato original. A política de risco de desastres foi definida como "formulada" em um balanço do uso dos recursos feito pelo governo naquele mesmo ano.
Por meio de nota, a Casa Civil informou ter solicitado à Sema e à Defesa Civil a análise interna do estudo para avaliar as ações desempenhadas e previstas, além de sua complementaridade ao Sistema Integrado de Monitoramento e Alerta (Sima) "e a oportunidade de construção de uma lei própria que possa trazer novos elementos utilizando-se do anteprojeto de lei complementar".
Não foi um recurso que não teve utilização só porque (o anteprojeto) não virou um projeto de lei específico: ele trouxe levantamentos importantíssimos
MARJORIE KAUFFMANN
secretária da Sema do governo Leite
— Não foi um recurso que não teve utilização só porque (o anteprojeto) não virou um projeto de lei específico: ele trouxe levantamentos importantíssimos, e muito do que está proposto já vem sendo executado pelo governo do Estado. Ele traz essas linhas gerais e nos dá diretrizes importantes que nós já utilizamos — afirma Marjorie Kauffmann, atual secretária da Sema.
Como exemplo, ela cita o desenvolvimento de planos municipais de contingência, uma sala de situação, a rede de monitoramento hidrológico e a comunicação entre Defesa Civil estadual e dos municípios e também com entes federais, como o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
— Fizemos investimentos vultosos, independentemente de uma legislação específica. Temos conversas com a academia para desenvolver um projeto que vá além de previsões. Estamos trabalhando na instituição de um centro integrado de gestão de risco e também de aquisição de equipamentos que buscam fortalecer esse sistema que já atua no governo do Estado. É equivocado dizer que não se executa nada, como se não tivesse nada hoje no Rio Grande do Sul — acrescenta.
A Sema afirmou ter investido cerca de R$ 41 milhões desde 2014 em políticas de monitoramento e combate aos efeitos de eventos climáticos extremos. A pasta prevê utilizar mais de R$ 1 milhão ainda neste ano e outros R$ 138,5 milhões no Plano Plurianual, a partir de 2024.
Por sua vez, a Casa Militar informou que o investimento foi de R$ 10,7 milhões desde 2014 e que R$ 6 milhões estão previstos para 2023. A pasta assegura que R$ 8,8 milhões no Plano Plurianual, a partir de 2024.
Segundo o governo estadual, R$ 147,3 milhões serão investidos em ações relacionadas a eventos climáticos dentro do próximo Plano Plurianual (entre 2024 e 2027).
O que diz o Banco Mundial
Questionado pela reportagem, o Banco Mundial enviou uma avaliação feita por um grupo independente da instituição sobre os recursos destinados ao Estado. O texto cita melhorias no sistema estadual: com a criação de um sistema de monitoramento de risco de desastres e uma sala de situação, citados pela ex-secretária da Sema, o projeto "apoiou melhorias na gestão de risco de desastres, que foi em grande parte realizada com a formulação de uma política de gestão de risco de desastres".
Esses investimentos, informa a entidade no relatório de 2019, "constituem aspectos importantes do fortalecimento institucional, que mostrarão resultados positivos nos anos seguintes". Outra avaliação do Banco Mundial afirma que "a comunicação e a tomada de decisões conjuntas entre os atores melhoraram, e a política ambiental do Estado e a resposta a desastres adquiriram uma inclinação para uma melhor prevenção de riscos e gestão eficaz".