Esta reportagem foi produzida por Maria Fernanda Freire, aluna de Jornalismo na UFRGS e uma das cinco vencedoras da edição 2023 do projeto Primeira Pauta RBS
Na calçada do cruzamento entre as ruas Uruguai e Siqueira Campos, no centro de Porto Alegre, a técnica em enfermagem Talita Aguiar, 34 anos, senta-se sobre uma fileira de espinhos de ferro com seis centímetros de extensão cada um. Há 10 anos morando na rua, ela convive diariamente com obstáculos proporcionados pela arquitetura hostil da cidade.
Talita é mais uma das 3.306 pessoas que, de acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, estão em situação de rua na cidade. Ela tem preferência por ocupar a área central, onde consegue ficar mais próxima de estabelecimentos comerciais que eventualmente a auxiliam com doações. Sua rotina, porém, é desviar dos elementos colocados em espaços públicos e privados para afastá-la da região.
A poucas quadras dali, em frente à sede dos Correios, um conjunto de paralelepípedos dispostos na vertical, estrategicamente embaixo da marquise, impede os moradores de dormirem protegidos. No Espaço Força e Luz, na Rua dos Andradas, a calçada é cercada por uma pequena grade de ferro, que também dificulta o abrigo. São raros os prédios e calçadas da região desprovidos de artefatos intimidadores.
Segundo o urbanista e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Eber Marzulo, o recurso é um dos inúmeros exemplos da prática de arquitetura hostil, termo que designa um conjunto de medidas arquitetônicas pensadas para afastar parcelas específicas da população de espaços urbanos.
Marzulo explica que, apesar de a arquitetura hostil ser debatida no meio acadêmico desde o início da década, o tema se popularizou a partir das denúncias realizadas pelo Instagram pelo padre Júlio Lancellotti, de São Paulo, em 2021. Durante o período, no auge da pandemia de covid-19, a desigualdade social bateu recorde no Brasil, como aponta o estudo “Efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho brasileiro”, divulgado pelo FGV Social.
As denúncias do religioso surtiram efeito. No final de 2022, entrou em vigor a Lei 14.489. Batizada de Lei Padre Julio Lancellotti, a norma proíbe a arquitetura hostil em todo território nacional. Um ano após a determinação, entretanto, exemplos desse tipo de arquitetura persistem na Capital, causando desconforto para pessoas como Talita.
Na percepção do arquiteto da Secretaria de Obras e Infraestrutura de Porto Alegre, Oscar Coelho, a permanência das instalações se deve à falta de clareza na política de enfrentamento da prefeitura, uma vez que não existe fiscalização específica para o tema, tampouco um canal de denúncias.
Um problema maior
Para Marzulo, a naturalização e falta de fiscalização se devem ao fato de a arquitetura hostil ser uma manifestação de aporofobia. O termo deriva do grego e designa preconceito ou aversão a pessoas pobres. De acordo com o urbanista, há uma contradição intrínseca ao problema:
— Os indivíduos em situação de rua são tipicamente urbanos. Não se encontra a figura da pessoa em situação de rua no campo, por exemplo.
Na sua visão, quando a arquitetura hostil barra essas pessoas do espaço urbano, acontece uma negação de sua própria condição enquanto indivíduo e cidadão.
Em Porto Alegre, a assistência social oferecida pela prefeitura tem como enfoque a remoção das pessoas em situação de rua das vias públicas, e não há na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) projeto que vise a remoção de elementos de arquitetura hostil da cidade. O Plano Ação Rua, gerido pela SMDS, oferece abrigo, albergue, hospedagem social, auxílio moradia, internação em saúde ou retorno para um domicílio de origem.
Para Talita, que já foi abordada pela Fundação de Assistência Social e Cidadania e passou períodos em albergues e Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros POPs), a solução não é satisfatória.
— O albergue é algo complexo. Se torna um ciclo vicioso. Sai do albergue, vai para o Centro POP, retorna ao albergue. Eu não gosto de viver nessas regras — relata.
Para Marzulo, o modelo de acolhimento da prefeitura não respeita a rotina, a estrutura e o tempo da população de rua. Atualmente, Porto Alegre conta com três albergues, totalizando 240 vagas. Nesses espaços, a pernoite dura das 19h às 7h da manhã. Para receber o acolhimento no local, é necessário portar documento de identificação. As regras permitem que pessoas sob o efeito de entorpecentes utilizem do serviço, desde que não apresentem riscos para si mesmos ou para outros. Os critérios dessa avaliação, entretanto, não são claros.
A falta de acolhimento eficiente em albergues se soma aos elementos hostis da arquitetura da cidade, e agrava a situação de vulnerabilidade desses cidadãos. A remoção de pertences pessoais desses indivíduos das calçadas, medida adotada pela prefeitura sob pretexto de viabilizar o trânsito de outros cidadãos, também é questionada por Coelho:
— Nós, enquanto sociedade, já tiramos tudo dessas pessoas, e agora estamos tirando o seu direito de ocupar o espaço público com seu corpo — afirma.
O encontro
Nas lacunas deixadas pelos órgãos públicos, projetos da sociedade civil se mobilizam para restaurar o senso de pertencimento ao espaço urbano para pessoas em extrema vulnerabilidade. É o caso do projeto A Cara da Rua, desenvolvido como atividade de extensão pela Faculdade de Arquitetura da UFRGS.
A iniciativa, premiada no Salão de Extensão da universidade em 2023, realiza oficinas de fotografia com quem está em situação de rua. Os registros são realizados em vias públicas, parques e praças, e buscam registrar o olhar desses indivíduos sob seu ambiente. Para a coordenadora do programa, a professora Daniela Mendes Cidade, o Cara da Rua proporciona protagonismo e reforça o pertencimento desses indivíduos ao espaço urbano.
— A ideia é pensar a rua como um local de vivência coletiva, promover a partilha de espaços urbanos — relata a professora.
Mendes explica que, a partir dessas fotografias, são produzidos cartões postais. O material é entregue aos participantes da oficina, que podem utilizar a produção artística como fonte de renda.
— Isso permite que eles se enxerguem enquanto corpo criativo e abre possibilidade de inserção na cidade, o que possibilita diálogo com diferentes tipos de pessoas — reforça.
Nesse sentido, o projeto desempenha papel relevante na inversão da lógica de aporofobia e exclusão que a arquitetura hostil traz para metrópoles como Porto Alegre.
— Cada vez mais, a cidade proporciona encontros entre os iguais, e a beleza da vida urbana está nesse encontro dos diferentes —reitera Marzulo.
Enquanto estes encontros permanecem raros, as grades, pinos e pedras seguem no caminho de Talita. Ao lado do cachorro Lobinho, ela continua nos degraus da calçada, sentada sobre espinhos de ferro, segurando um pedaço de papelão com escritos em caneta vermelha: “Olá! Se for possível, ajudar com ração ou algum alimento na volta. Obrigado. Deus abençoe!”
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