Esta reportagem foi produzida por Fernanda Schimanski Axelrud, aluna de Jornalismo na PUCRS e uma das cinco vencedoras da edição 2023 do projeto Primeira Pauta RBS
— Eu sou viciado. Não tenho como me defender, é como se fosse qualquer tipo de droga. Tu começa e é muito difícil parar.
Júlio* tem 17 anos e começou a apostar com 16. Usando o CPF da irmã mais velha, o adolescente acessa plataformas online de apostas esportivas todos os dias. Júlio prefere as apostas com menor investimento, de R$ 10 a R$ 30, e diz gostar da ansiedade gerada por uma partida na qual apostou:
— Mesmo que tu esteja perdendo dinheiro, tu tá te divertindo. É um dinheiro que também não vai fazer falta e, se eu ganhar, vou estar lucrando.
Aluno do 2º ano do Ensino Médio de um colégio particular da Capital, Júlio conta que os amigos da escola pedem para ele parar, pois "sempre perde" ou "é viciado" e "não consegue se controlar". Alguns deles, segundo Júlio, também são apostadores casuais.
Quando perde uma quantia maior, Júlio diz ter vontade de abandonar os jogos, mas dois ou três dias depois acaba voltando. Certa vez, perdeu R$ 200 em uma única aposta.
— Digamos que eu tenho 10 "pilas" na conta e eu não tô fazendo nada. Eu vou apostar. Vai que eu ganho R$ 100, sabe?
Foi a publicidade das casas de apostas em times e em estádios de futebol que chamou a atenção do adolescente. O maior sonho do estudante, hoje, é conquistar a independência financeira "sentado no sofá de casa, mexendo no celular".
Como não alcança essa independência, é a mãe de Júlio quem o sustenta. Ciente do hábito de apostas do filho, ela o repreende ocasionalmente. Em especial, conta Júlio, quando ele perde e precisa pedir mais dinheiro. O recurso eventualmente conquistado ele usa para sair com os amigos.
O acesso de menores de idade a sites de apostas não é legalizado no Brasil. Mesmo assim, estão entre os 100 milhões de brasileiros que já apostaram em casas esportivas na internet desde 2018, quando elas foram autorizadas a operar no país (o dado é da TGM Research).
Não há pesquisas específicas sobre o acesso de adolescentes às apostas online. O dado que fornece uma pista vem de levantamento realizado pela plataforma Futuros Possíveis, em colaboração com Opinion Box e Afro Esporte. Conforme o estudo, 39% dos brasileiros entre 16 e 29 anos já apostaram alguma vez na vida. As organizações que representam os sites de apostas defendem restrições ao acesso dos menores de idade aos jogos (leia mais abaixo).
Especialista em psiquiatria da infância e adolescência pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre e coordenador do Grupo de Estudos de Adições Tecnológicas, Daniel Spritzer explica que a perda de controle sobre a quantidade de tempo e de dinheiro apostados configura uma dependência não-química. Esse vício tem semelhanças comportamentais e fisiológicas com ao de álcool, cigarro e outras drogas. Segundo o psiquiatra, um dos principais problemas deste novo universo de apostas é serem vistas como uma maneira de se relacionar com o esporte:
— Quem está apostando não é um público que tem um interesse específico primário por jogos de azar, e sim na prática e no convívio em atividades esportivas.
Para o psicoterapeuta Bruno Sperb, especialista em infância e adolescência e membro do Grupo de Estudos de Adições Tecnológicas, a influência da família é determinante, pois a criança tende a seguir como modelo pessoas que são referências para ela.
— As "betting" entraram de uma maneira avassaladora na cultura. Há, no geral, uma normalização das apostas. Se tornou algo natural.
Na casa de Ana*, de 14 anos, apostar faz parte da cultura familiar. Ela começou a jogar neste ano, quando o pai e a madrasta lhe mostraram sites de cassino que eles mesmos usavam. Como ganhavam dinheiro, consideraram que a adolescente também poderia ganhar. Hoje, ela frequenta jogos de cassino online e costuma apostar cerca de quatro vezes por semana, gastando, em média, R$ 80 por semana. Ela conta que o pai lhe dá dicas e alertas.
— Ele diz "quanto mais tu ganhas, mais tu perdes".
Regras mais rígidas para coibir menores
Cinco anos após ter sido autorizado, o funcionamento de casas de apostas online no Brasil até hoje não foi regulamentado. No dia 22 de novembro, o projeto de lei que busca estabelecer as regras para o setor foi aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. O texto, que ainda precisa ir a plenário, traz mudanças importantes. Uma delas é a obrigatoriedade do reconhecimento facial nas plataformas, tornando mais difícil a participação de menores de idade.
Outra novidade é a tributação sobre casas de apostas. Os cofres públicos almejam arrecadar 12% do faturamento delas. Pelas regras aprovadas na comissão do Senado, 1% desta arrecadação do governo seria destinado ao Ministério da Saúde para medidas de prevenção, controle e mitigação de danos sociais advindos da prática de jogos. De um universo de R$ 2 bilhões que o governo espera arrecadar em apostas, seriam R$ 20 milhões para programas de prevenção em 2024.
A emenda que limitava a publicidade, proibindo anúncios na televisão, em estádios e uniformes de jogadores, não foi aprovada. A justificativa foi de que "as vedações sugeridas eram amplas e poderiam conflitar com o princípio constitucional da livre iniciativa e da liberdade de contratar".
Para o psicoterapeuta Bruno Sperb, o uso de ídolos como jogadores, influencers e youtubers para a promoção das casas de apostas é parte de uma estratégia de marketing que tem maior impacto sobre jovens.
— Para produtos como álcool e cigarro, que podem levar ao vício, foi desenvolvida uma delimitação legal e uma proibição, inclusive, de certas modalidades de propaganda. Como deve ser feito para as apostas? — questiona.
Organizações pela regulamentação dos jogos defendem controle maior
Procurado pela reportagem, o Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR) declarou em nota ser "absolutamente favorável ao controle de acesso de menores ao consumo de jogos e apostas [...] e que o reconhecimento facial deve contribuir neste controle". O IBJR representa as empresas bet365, Betsson Group, Betway, Entain, Flutter Entertainment, KTO Group, Leo Vegas, NetBet, Novibet, Rei do Pitaco e Yolo Group.
Outra entidade de defesa da legalização dos jogos, o Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL) classifica como "robusta" a proposta de regulamentação. Segundo nota divulgada pela organização, "existe a preocupação de coibir a participação de menores e vulneráveis nesta atividade".
O texto também diz que o "projeto de lei cria restrição de horários, programas, canais e eventos para veiculação de publicidade e de propaganda das apostas, de modo a evitar que sejam divulgadas a menores de idade". Destaca ainda que "a iniciativa de obrigar as plataformas a adotarem procedimentos de identificação que permitam verificar a validade da identidade dos apostadores evita que menores de idades burlem o sistema de verificação do cadastro do apostador".
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.
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