Esta reportagem foi produzida por Ana Carolina Lorenzini, aluna de Jornalismo na Univates e uma das cinco vencedoras da edição 2023 do projeto Primeira Pauta RBS
"As mulheres sempre estiveram na cena do rock, mas, por muito tempo, não tiveram o devido reconhecimento e espaço para mostrar isso". Integrante de quatro bandas do gênero musical, Julia Barth, 41 anos, é conhecida na cena porto-alegrense. A gaúcha começou a trajetória em 1998 e, desde então, acompanhou de perto a evolução do meio.
— Sempre quis ser rock'n roll — diz ela.
Julia comenta que cresceu no meio de roqueiros e que a entrada no ramo foi um processo natural. Começou a primeira banda aos 16 anos, chamada Alcalóides, grupo que completou 25 anos em outubro. Em 2006, passou a fazer parte dos Replicantes. Hoje, também toca baixo e faz backing vocal para mais duas bandas, a 3D, grupo só com artistas femininas, e a Cine Baltimore.
Para a musicista, a participação nos grupos foi porta de entrada para discussões sobre o tema. Mas ela contrapõe que, mesmo com a presença, o assunto é delicado e precisa ser mais debatido e impulsionado no cotidiano.
Uma pesquisa do coletivo União das Mulheres do Underground, realizada entre 2017 e 2021, apresenta dados sobre a presença feminina em bandas de rock e as vertentes na cena independente brasileira. Dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 142 cidades tinham bandas com figuras femininas.
No ranking, 654 grupos foram identificados. Destes, 112 estavam localizados na região Sul, número que representa 17% do total. Dado que coloca a localidade atrás apenas do Sudeste. Ainda no levantamento, entre cidades, Porto Alegre ficou em quarto lugar, com 32 bandas, equivalente a 5% do total.
— Até hoje sinto que algumas vezes entramos como cota nos eventos. Ao mesmo tempo, a representatividade é fundamental porque faz com que outras mulheres se vejam naquele lugar e tenham coragem de estar lá. Ter visto figuras femininas foi importante para que eu pudesse me imaginar no palco — completa Julia.
A cena jovem
O desejo de servir de inspiração foi o que fez Giulia Ferrari, 25 anos, começar a tocar bateria. Ela explica que, no contato com o gênero ao longo da adolescência, só conheceu bandas femininas mais tarde.
— Isso me fez refletir bastante. Muitas vezes senti falta de pertencimento em momentos que vivi na música. Percebi como a representatividade feminina inspira e fortalece o cenário — reflete Giulia.
Hoje, ela toca na Mad Blues, banda recente na cena porto-alegrense. A baterista detalha que, em mais de 80% dos shows em que dividiu o palco com outras bandas, a predominância era masculina.
— Não que isso seja ruim. Trocamos experiências e buscamos incentivar o nosso público a fazer parte do movimento, apoiando artistas femininas — ressalta.
Para ela, a música não é apenas subir no palco e tocar, é envolver a questão social e como se pode impactar positivamente quem está ouvindo:
— Atualmente a cena está mais abrangente, com mais oportunidades e também incentivo para as mulheres. As redes sociais, por exemplo, são um ótimo meio para criar e compartilhar conteúdo.
Giulia comenta que nasceu em uma família tradicionalista gaúcha, mas que não se identificava com as músicas.
— Queria me sentir pertencente — afirma.
Por isso, passou a procurar por bandas diferentes. O rock chamou a atenção e, ainda na pré-adolescência, ela aprendeu a tocar bateria.
Com um desejo semelhante, a vocalista da banda Ovo Frito, Tita (nome artístico), 20 anos, desde nova puxou a frente de projetos na área. O rock, para ela, é um estilo musical que junta emoção e flerta com o sentimento dos jovens:
— Quero, de alguma forma, deixar minha marca e inspirar outras meninas.
À frente da banda, Tita afirma que o grupo trata dessa temática nas músicas, no comportamento e nas ações. Ela reforça ainda que esta representatividade trouxe oportunidades para o grupo, também da Capital gaúcha.
— A cena continua dividida. Ainda existem pessoas que implicam por ser uma banda liderada por uma mulher — avalia.
Porém, segundo a vocalista, mesmo com as dificuldades, a presença feminina tem aumentado e passado a ser mais reconhecida. Para ela, cada vez mais, há procura por bandas femininas ou com front woman, um indicativo positivo na nova cena.
Incentivos
Além de integrante de quatro bandas, Julia é produtora de festivais voltados à cena feminina. Entre eles está o Vênus em Fúria. Fundado em 2017, o evento reúne bandas e artistas com protagonismo do gênero. A musicista destaca que, em cada edição, pelo menos oito bandas foram convidadas, sem nenhuma atração repetida:
— As bandas estão aí, elas só precisam de espaço e alguém que as procure.
Presente na região desde a mesma data, o Gurias Rock Camp, uma adaptação do Girls Rock Camp Brasil, é outra programação de destaque. O evento reúne meninas de sete a 17 anos em uma semana de aprendizados sobre música. As gurias escolhem entre bateria, baixo, guitarra, teclado ou vocal e aprendem a tocar/cantar, além de formar uma banda. Ao final da semana, com atividades exclusivamente diurnas, elas apresentam uma música autoral.
A versão adulta deste evento é o Mulheres Amplificadas.
— Sabemos da necessidade desses espaços de troca, principalmente por ser uma faixa etária com maior bloqueio — afirma Julia.
Mudança gradual
Segundo o curador e programador artístico, Guilherme Thiesen, o incentivo de produtores é fundamental para o crescimento e notoriedade de mulheres na música. Ele afirma que o acesso a meios de produção, ferramentas e instrumentos permite a gradativa quebra de paradigmas como o estilo musical sendo algo masculino.
— Por muito tempo, tivemos uma hegemonia masculina à frente de instituições que, de fato, poderiam gerar interesse e demanda dessas pautas. Isso está mudando. A entrada delas no meio é uma realidade, que só tende a tomar mais corpo, presença em festivais, casas de shows, instituições e outros locais — pontua.
O curador afirma ainda que quanto maior o espaço de mulheres nos palcos, produções e engrenagem técnica, maior será a possibilidade dos grupos tirarem as ideias do papel que, muitas vezes, ficam restritas a um espaço privado.