A Justiça estadual gaúcha vive a maior crise da sua história. A avaliação é da própria administração do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). Os gestores relatam estar fazendo o que podem para superar as adversidades tecnológicas que tiveram como estopim um ataque hacker ocorrido em 28 de abril que atingiu os sistemas da corte. Mesmo diante dos esforços, que já amenizaram as dificuldades, nem tudo está resolvido.
O que já estava lento em razão das restrições de funcionamento do Judiciário na pandemia, ficou ainda pior. GZH conversou com mais de duas dezenas de operadores da Justiça estadual, como juízes, desembargadores, servidores, advogados, promotores, procuradores de Justiça, procuradores do Estado, defensores públicos, policiais e entidades que representam categorias, além de partes de processos, para saber quais são os reflexos e o que está sendo feito para solucioná-los.
A atual administração busca responder a todas as perguntas, mas ela própria não tem algumas respostas. Algumas instituições ligadas ao sistema de Justiça evitam se manifestar sobre o assunto. O mesmo ocorre com quem lida no dia a dia dos processos.
Pressionada por advogados que estão vendo seus recursos escassearem em virtude da paralisação ou lentidão de mais de 2 milhões de processos, a única que tem se arriscado ao confronto é a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS), que reclama de falta de transparência e pede celeridade para resolução dos problemas. A seccional gaúcha da entidade ingressou no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pedindo divulgação de cada ato sobre o que está sendo feito, a retomada da abertura dos foros em tempo integral e volta da fluência dos prazos processuais.
Nesta semana, GZH percorreu os corredores vazios do Tribunal de Justiça — em razão do teletrabalho parcial e da restrição de acesso público — para conversar com o desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, presidente do Conselho de Comunicação do TJ-RS, porta-voz da corte na divulgação do que foi e o que está sendo feito para solucionar os problemas.
Segundo Silveira, a reabertura dos prazos e retorno de um número maior de pessoas para suas rotinas de trabalho virtual ocasionaram uma espécie de sobrecarga do sistema, danificando um dos equipamentos de informática.
— Houve uma demanda muito grande de migração de dados do nosso armazenamento, do nosso banco de dados. E essa demanda acabou trazendo reflexos nesse equipamento de hardware. Ele apresentou defeitos num primeiro momento, que acabaram repercutindo nos softwares, fornecidos por outra empresa contratada — descreve.
Segundo o magistrado, os equipamentos que apresentaram defeito estavam chegando perto da época de serem trocados e isso foi antecipado. Uma nova máquina, de fabricação chinesa, foi adquirida.
GZH teve acesso à chamada sala-cofre, que é o epicentro da crise na Justiça gaúcha. Trata-se de um local onde somente servidores autorizados com senha podem entrar. Climatizada com uma temperatura de 20ºC, estão lá os equipamentos que vem apresentando lentidão e também o novo, que passará a operar, ao custo de cerca de R$ 6 milhões, comprado por meio de licitação.
A digitalização dos processos físicos, que ainda são maioria, não será concluída até o fim do ano, como pretendia o presidente do TJ-RS, desembargador Voltaire de Lima Moraes. A empresa contratada para escanear as peças faliu. Foram firmados novos contratos, desta vez por regiões do Estado e com empresas diferentes. Não há novo prazo para conclusão da digitalização, mas estima-se que isso ocorra ao longo de 2022.
— Acredita-se que, nos próximos dias, teremos a autorização de reabertura dos prazos para normalizar os serviços — projeta Silveira, ao citar que, nos últimos dias, tem trabalhado nos sistemas afetados sem instabilidade.
Segundo o TJ-RS, tudo o que estava na rede da corte foi recuperado. Nenhum documento ou processo teria sido perdido. Já os conteúdos que estavam salvos em computadores foram perdidos porque foi preciso formatar as máquinas.
A Dell e a Oracle são as empresas fornecedoras de hardware e software do TJ-RS. Procuradas, as duas preferiram não se manifestar. Além do hardware comprado, foi preciso fazer um aditivo no contrato com a Oracle no valor de R$ 228 mil para uma espécie de aperfeiçoamento tecnológico do software.
Na noite de sexta-feira (30), informou que ocorreu, à tarde, uma reunião entre os integrantes da administração e a equipe técnica da área de informática. "Durante o encontro, os técnicos da Diretoria de Tecnologia da Informação do TJ (DITIC) relataram ao Presidente que os sistemas já estão com maior estabilidade, e que foi verificada a necessidade de fazer uma atualização do sistema de banco de dados desenvolvido pela empresa fornecedora Oracle, cujo desempenho será avaliado já neste final de semana. Pela manhã, servidores da DITIC participaram de reunião conjunta com técnicos das empresas fornecedoras Dell e Oracle, e à tarde tiveram encontro com magistrados do TJ e a direção da Oracle, a fim de buscar maior agilidade na solução da instabilidade registrada", diz a nota.
Magistrados e servidores
Juízes e desembargadores que conversaram com GZH relataram um certo “malabarismo” para conseguir despachar, realizar audiências e julgar processos. Diante da instabilidade dos sistemas, um juiz da Capital decidiu pagar do próprio bolso um programa para realização e gravação de audiências, que são feitas a partir de sua residência, de forma virtual.
— O computador é meu, a cadeira é minha, a internet é minha, a certificação (do programa usado) é meu. Há uma certa insatisfação interna com o que está acontecendo — diz o magistrado, que pediu para não ter a identidade publicada.
Para evitar o risco de ficar sem acesso aos processos durante as audiências, ele tem imprimido as principais peças. Assim, evitar o risco de precisar transferir depoimentos em razão da falta de informações.
Um outro desembargador, que também pediu reserva sobre sua identificação, também diz estar usando computador próprio para evitar eventuais riscos.
— O tribunal gasta uma boa quantia em informática. O problema do tribunal não é máquina. É insegurança. O sistema é inseguro — avalia o magistrado, ao considerar que houve um erro da corte ao demorar para aceitar o uso do e-proc, sistema criado pela Justiça Federal da 4ª Região e cedido ao TJ-RS há alguns anos.
— Se estivéssemos com tudo no e-proc, talvez isso não teria acontecido — observa o desembargador, ao lembrar que esse sistema foi o único a continuar operando, enquanto que os processos vinculados ao Themis, sistema próprio da corte, foram afetados.
A mesma opinião é compartilhada por outro desembargador:.
— Houve uma grande demora, resistência dos colegas para passar para o e-proc. Isso foi feito bem depois. O Themis é um sistema remendado há vários anos.
Em outra crítica, diz que a digitalização em massa dos processos físicos, somada ao ataque hacker, sobrecarregou o que já não vinha bem em termos tecnológicos:
— A digitalização em alta velocidade dos processos físicos levou a um colapso no banco de dados do sistema Themis, que não tinha condições de absorver tudo isso.
Cita os reflexos diretos dessa instabilidade na câmara onde trabalha:
— No mês de julho, tínhamos três sessões e falharam as três.
As sessões virtuais, que duram uma semana, estão com a pauta dobrada de ações em razão do represamento, diz.
O presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Orlando Faccini Neto, evita polemizar sobre o assunto. Admite, no entanto, a angústia para que esse problema se resolva o quando antes:
— Ao mesmo tempo em que a Ajuris tem confiança no Tribunal de Justiça para encaminhar soluções para os terríveis problemas pelos quais estamos passando, igualmente compreendemos a necessidade manifestada pelos advogados de que os trabalhos se desenvolvam adequadamente, inclusive porque isso é um anseio também dos juízes e das juízas do Rio Grande do Sul. Numa situação como essa, não há certo e errado, mas devemos resolver o problema.
GHZ conversou em maio, duas semanas após o ataque hacker ocorrido em 28 de abril, com o escrivão da 1ª Vara Criminal do Foro de Guaíba Douglas Régis de Souza. Agora, três meses depois, ele diz que a situação de lá para cá oscilou. Houve melhora, já que tudo chegou a ficar paralisado na época, mas que nos últimos dias a situação tem sido de algumas dificuldades.
— Ontem, por exemplo, não consegui criar no e-proc os números dos processos físicos que serão digitalizados — relata, explicando que primeiro cria-se o número para depois, com escaneamento das peças físicas, se possa ter a ação tramitando exclusivamente no sistema.
Segundo ele, certidões narratórias de processos arquivados e mandados não são cumpridos quando há queda ou instabilidade no sistema.
— Na plataforma original, por vezes, não se consegue fazer audiência. Mas, no último caso, se tenta até pelo WhatsApp. Cerca de 10% das audiências precisaram ser remarcadas devido a essa instabilidade. Vai atrasando sentenças, despachos. Por mais que se faça por fora do sistema, tem que inserir tudo. É um retrabalho — relata Douglas.
Procurada, a Associação dos Servidores da Justiça do Rio Grande do Sul não quis se manifestar.
Promotores e procuradores
Responsável pela defesa do interesse público, Ministério Público (MP), institucionalmente, tem se mostrado solidário aos problemas enfrentados pelo TJ-RS. O procurador-geral de Justiça, Marcelo Lemos Dornelles, esteve reunido na quarta-feira (28) com o presidente da corte, desembargador Voltaire de Lima Moraes, manifestando esse apoio. Em nota, o MP diz que tem "informações têm chegado diuturnamente da Divisão de Tecnologia e isso faz com que nós consigamos compreender a complexidade do problema".
"Infelizmente, este é um problema que pode acarretar algum atraso na entrega dos nossos serviços. Temos a certeza de que estão sendo adotadas todas as providências para que essas instabilidades sejam sanadas o mais rapidamente possível", diz a nota do MP.
Mas promotores e procuradores de Justiça que conversaram com GZH, sob condição de anonimato, relatam dificuldades de trabalho.
— No jeito que está o sistema, não se consegue acessar direito. São casos que até podem esperar, mas vão atrasando — diz um promotor.
Outro promotor diz que pedidos de prisão e mandados de busca e apreensão, por exemplo, estão demorando mais do que o usual para serem apreciados. Para fugir dos sistemas, casos urgentes estão sendo encaminhados aos juízes até mesmo por e-mail:
— A gente liga, conversa com o juiz, manda por e-mail. Depois tenta carregar tudo nos sistemas. Mesmo com improvisação, se resolve.
Procurada, a Associação do Ministério Público preferiu não falar sobre o assunto.
Advogados e partes
O presidente da OAB-RS, Ricardo Breier, tem sido um crítico à forma como a administração do TJ-RS tem enfrentado a crise. É autor da demanda enviada ao CNJ pedindo providências para divulgação das ações para resolução dos problemas e reabertura em tempo integral dos foros e retomada dos prazos processuais.
— A vida das pessoas está parada. O tribunal investiu muito em obras físicas e pouco em tecnologia. Hoje, as consequências estão aí — critica.
Segundo Breier, os advogados não conseguem ou demoram para conseguir juntar petições aos processos e verificar movimentação processual, entre outras atividades.
— Estamos preocupados com o represamento. É um colapso presente e futuro. Não temos transparência e não temos proposição de resolução — sustenta Breier, que vem sendo pressionado por advogados para intensificar a cobrança ao tribunal.
GZH esteve na quarta-feira no Foro Central de Porto Alegre para conversar com partes e advogados. Com pouco movimento em razão da restrição de horários, quem deixava o prédio II, no bairro Praia de Belas, relatava as dificuldades enfrentadas.
— Os telefones não atendem. Precisava de informações sobre a curatela da mãe. Tinha que mandar vídeo e não estava conseguindo. Então precisei vir aqui para resolver — disse Neila Cardoso Pereira, 58 anos.
Mesmo apressado para pegar o veículo de aplicativo, o advogado Jaime José Gotardi fez questão de falar:
— O sistema está muito lento.
Com os termômetros marcando 4ºC e sensação térmica ainda mais baixa em razão do vento em frente ao prédio que fica próximo do Guaíba, Adaildes Alves dos Santos, 65 anos, decidiu ir até o foro levando o neto pequeno porque não tinha com quem deixá-lo.
— Por telefone não está dando. Então vim pessoalmente. Precisava pegar uma certidão — relatou.
Procuradores do Estado
A pedido de GZH, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) enviou os principais impactos no trabalho dos procuradores. Conforme o procurador-geral do Estado, Eduardo Cunha da Costa, a instabilidade impacta na carga dos processos, já que sem acesso ao sistema não se pode localizá-los nos cartórios. Também diz que impediu “o protocolo de petições com prazo em curso, diante da impossibilidade de acessar o sistema Themis”.
Na área fiscal, há problemas para compensação de precatórios para quem deve imposto ao Estado e quer fazer essa quitação com o crédito. No caso da arrecadação de impostos, o impacto maior tem sido nas pesquisas de processos e decisões, que inviabiliza o prosseguimento de execuções e atrasa o ajuizamento de ações.
— No retorno à normalidade certamente teremos acúmulo de processos. Tivemos uma reunião chamada pelo presidente do TJ-RS na qual nos solidarizamos com a corte diante das dificuldades técnicas enfrentadas e nos colocamos à disposição para colaborar — afirma Cunha da Costa.
Defensores públicos
O problema nos sistemas do TJ-RS também afeta a rotina dos defensores públicos do Estado. Com atuação na área de família, um defensor conta que as dificuldades enfrentadas são compartilhadas em grupos internos da instituição em busca de sugestões para resolução.
— Por vezes, temos processos prontos e não podemos mandar porque o sistema dá erro. Do lote que enviamos, um terço acaba voltando com erro. Esperamos outro dia e então conseguimos mandar — relata.
Segundo o servidor, num dos casos em que trabalhava precisou buscar no sistema informações se um homem tinha ou não a guarda de uma criança e não conseguiu.
— O que era para agora, vira para a semana que vem — lamenta.
Rogério Souza Couto é defensor público-assessor, responsável pelo Escritório de Gestão Estratégica da Defensoria Pública do Estado. Diz que a preocupação principal está nos processos de liberação de medicamentos e tratamentos de saúde.
— Como a instabilidade dos sistemas afeta essencialmente o andamento regular dos processos físicos e do juizado da fazenda pública não há grande prejuízo, uma vez que os prazos processuais dos feitos atingidos estão suspensos ainda que se retarde a satisfação de direitos de nossos assistidos. Muitas vezes há necessidade de uma rápida decisão por parte do Judiciário e a instabilidade do sistema prejudica. Nesses casos, lidamos com vida e saúde de uma pessoa e a demora pode ser fatal — alerta.
Presidente da Associação das Defensoras e dos Defensores Públicos do RS, o defensor público Mário Rheingantz sustenta que essa questão vem trazendo consequências diretas para prestação do serviço público.
— O serviço público e defensoria pública estão trabalhando com a corda esticadíssima, porque a demanda aumentou na pandemia. Precisamos de investimento em tecnologia para atender melhor a população — diz Rheingantz.
Policiais
A Polícia Civil talvez seja a instituição menos afetada. Segundo o subchefe da Polícia Civil, delegado de Polícia Fábio Motta Lopes, não tem chegado queixas de problemas enfrentados pelas delegacias:
— O único relato é que há uma certa instabilidade para enviar alguns procedimentos. Não se sabe se é pela instabilidade do Judiciário ou nossa mesmo. Mas rapidamente se resolve. Nada grave.
O diretor do Departamento de Tecnologia da Informação Policial da Polícia Civil, delegado Antônio Vicente Vargas Nunes, ressalta que os problemas observados logo após o ataque hacker não existem mais:
— As remessas dos expedientes, dos inquéritos, das medidas cautelares, ou seja, mandados de busca e de prisão, não têm tido reflexos. Estamos conseguindo remeter ao Poder Judiciário e ao Ministério Público.